2005 O fim do pesadelo Oliver Hirschbiegel

O fim do pesadelo

 

Durante muitos anos, levantaram-se algumas dúvidas sobre o destino final de Adolf Hitler. A história de que se suicidara no seu “bunker” de Berlim, ordenando ainda, como última demanda, que fizessem desaparecer os seus restos mortais, queimando-os poucas horas antes da chegada do Exército Vermelho, demorou algumas décadas até ganhar credibilidade histórica. Apesar das evidências e dos testemunhos da época, a verdade é que o ditador nazi manteve essa aura mítica de lidere indestrutível e eterno, alimentando assim inúmeras e polémicas histórias sobre o seu verdadeiro paradeiro, construídas com base em mirabolantes fugas para a América Latina e disfarces extraordinários usados para o efeito. Essas “visões”, que de tempos a tempos encheram as primeiras páginas dos jornais mais sensacionalistas, ajudaram a construir a imagem deturpada de uma espécie de “super-homem” inalcançável, um pouco à imagem e semelhança de Hitler: o Führer – esse ícone que durante mais de uma década hipnotizou, literalmente, a esmagadora maioria do povo alemão.

O filme que agora chega até nós, precisamente quando se comemoram os 60 anos do fim da II Guerra Mundial, procura desmistificar a imagem que a própria Alemanha (da extrema esquerda e à extrema direita) preserva ainda do ditador nazi. Pela primeira vez, um realizador alemão, Oliver Hirschbiegel, aborda o tema do fim do conflito que devastou a Europa tomando os últimos dias da vida de Adolf Hitler (magnificamente interpretado por Bruno Ganz) como elemento de reflexão sobre a demência que significou toda a sua acção político-militar. Os derradeiros dias de resistência dos comandos militares nazis servem aqui para enquadrar a decadência física e espiritual do seu lidere máximo, o mesmo que poucos anos antes havia conduzido a Alemanha à grande conquista da Europa Continental. Os hábitos alimentares, a doença de Parkinson, os ataques de raiva e o descontrolo emocional do ditador dão-nos uma imagem mais humana, mas igualmente cruel, do “monstro” que ordenou a “solução final”, esse eufemismo nazi usado nas comunicações oficiais destinadas a promover o extermínio do povo judeu. Não podemos esquecer que para lá dos horrores próprios da guerra, as imagens quase inumanas dos muitos campos de concentração nazis viriam a produzir um profundo repensamento sobre a origem e o destino do homem, pois aí foram mortos e assassinados (das formas mais violentas e macabras) mais de seis milhões de judeus, para além de centenas de milhares de ciganos e outras etnias desprezadas pela “superioridade rácica ariana”. Os valores que aí se escondiam e actuavam, deixaram marcas profundas e ainda por sarar em várias gerações de ocidentais.

Quedando-se pela mediania ao nível cinematográfico, a narrativa de “A Queda” apresenta todavia um valor muito considerável, marcado pela aparente fidelidade das suas fontes principais: as memórias de Traudl Junge (a secretária privada de Hitler nos últimos anos do conflito, interpretada aqui por Alexandra Maria Lara) e “Der Untergang”, a obra referência do historiador e biógrafo de Hitler, Joachim Fest. Desenvolvendo um registo que pretende dar uma imagem ficcional dos últimos dias vividos no “bunker” do ditador, o realizador mantém presente o carácter eminentemente documental da sua história, apontando ainda para uma outra temporalidade da acção que visa sublinhar a humanização quase rotineira desses momentos derradeiros da elite nazi. Da cena de envenenamento dos filhos de Goebbels ao casamento sumário de Hitler e Eva Braun, o “subterrâneo” do Führer viveu o drama humano do fim da vida, como se lá fora não houvesse mais do que algumas explosões distantes. O filme de Hirschbiegel não procura nenhuma redenção germânica pela defesa do ponto de vista dos Aliados ou dos judeus, mas antes olhar fundo no olho da serpente e ver, afinal, onde acaba a alienação e começa o desespero de Hitler perante a inevitabilidade da derrota. Aliás, o drama de Hitler nunca esteve na derrota militar, mas na humilhação maior que simbolizaria para si ser capturado e obrigado a assinar a capitulação final. O seu fim, paradoxalmente trágico, significou também o fim do maior conflito de que há memória, e talvez o mais importante será lembrar, hoje e sempre, que não foram ícones nem deuses que o perpetraram, mas precisamente seres humanos que se deixaram levar pela transcendentalização da sua própria insanidade.

 

“A Queda – Hitler e o Fim do Terceiro Reich” (Alemanha/Itália/Áustria, 2004) ***
Realização: Oliver Hirschbiegel

Actor principal: Bruno Ganz, Alexandra Maria Lara, Corinna Harfouch

 

(in Vida Ribatejana, 11-5-2005)