1999 o homem raio Man Ray

o homem raio

 

O Museu do Chiado apresenta até meados de Janeiro do próximo ano uma exposição duplamente extraordinária. Primeiro, porque se trata de Man Ray (1890-1976), um dos maiores artistas de vanguarda que o século XX conheceu. Segundo, porque jamais em Portugal se expôs cerca de 400 trabalhos de uma figura tão essencial e decisiva do modernismo internacional. Pela mão de Pedro Lapa, director da instituição portuguesa, e do coleccionador italiano Giorgio Marconi (que cedeu temporariamente uma parcela da sua vasta colecção de obras de Man Ray), a presente mostra confirma, sem reservas, um percurso excepcional votado à experimentação contínua, ao deslumbramento do acaso, à poética da ironia sobre as imagens e os objectos, na reordenação criativa das suas sombras metamorfoseadas.

Desde o seu início, como na longa série de serigrafias “Revolving Doors” (1926), até aos últimos gestos datados entre 1973 e 1975, como nessa fenomenal e lúdica “assemblage” que é “Optic Topic” (1974), Man Ray manteve constante uma visão subversiva da criatividade no mundo moderno, explorando diversos meios (pintura, escultura, objecto, colagem, desenho, fotografia, filmes) numa dinâmica comum à aventura de um explorador pelas zonas mais recônditas do planeta. A sua relação com a imagem fotográfica e as inúmeras potencialidades técnicas e químicas que esta encerra alimentaram um espírito decisivamente “científico”, no sentido da invenção e da surpresa absolutas. O desenvolvimento sistematizado dos “rayogramas” – numa técnica praticamente inventada por Man Ray no início dos anos 20 na sequência das pioneiras experiências de Fox Talbot no século XIX e que consistia em pressionar directamente objectos no papel fotosensível sem recurso à objectiva – marca o modo particular como o artista norte-americano de origem ucraniana unia à renovação da experiência técnica uma e continuada estrutura estética. Aí se pode constatar como não se trata de um trabalho baseado na exploração do meio, mas antes da construção elaborada de um complexo sistema de signos. Os valores de recriação em torno dos efeitos contrastantes entre o preto e o branco ditados pela técnica do “rayograma”, introduzem na estética da fotografia moderna, surrealista e não só, uma extraordinária abstractização do referente, criando novas perspectivas sobre o entrecruzado reconhecimento dos objectos utilizados em todo o processo fotográfico. Já nos anos 30, Man Ray realiza um conjunto significativo de imagens onde a revelação da fotografia sofre parcialmente a acção directa dos raios solares. Este procedimento denominado por “solarização” altera significativamente as zonas de contorno e envolvem as figuras numa espécie de “aura” misteriosa, confundindo desse modo as noções de representação dos corpos e do espaço e buscando ao mesmo tempo conjugar essa intenção com uma magnífica e quase clandestina dimensão eróticas das imagens. Por exemplo, da série “Nu” (1934), Man Ray explora o jogo de diferenciação directa da técnica de “solarização”, contrapondo imagens semelhantes sem recorrer a tal técnica. Por outro lado, a concentração estética nos diversos e poderosos efeitos de contraste de luz real e artificial em relação à expressão do corpo da modelo remetem ainda para uma certa paternidade sobre alguns dos trabalhos do famoso fotografo nova-iorquino, Robert Mapplethorpe. Na fotografia ainda, destaque para a desconhecida e importantíssima série “Fifty Faces of Juliet” (1944-51). Realizada tendo por base a plural ficcionação da imagem da modelo (Juliet, última companheira de Man Ray), estas imagens soltam a densidade da metamorfose da figura feminina nos estereótipos da sua identificação, numa estratégia que antecipa significativamente as séries “Untitled” de Cindy Sherman, realizadas nas décadas de 70 e 80.

Se estes exemplos não fossem suficientes para uma longa e apurada visita ao Museu do Chiado, nesta exposição podemos encontrar igualmente muitos dos objectos e “assemblages” que caracterizam a imagem de marca do artista e que constituem uma oportunidade única de contacto directo sobre alguns dos símbolos do dadaísmo e do surrealismo internacionais, apesar de Man Ray sempre se ter mantido pouco comprometido com o espírito de uma acção de grupo. Estão lá as fotografias e o objecto de “L’énigme d’Isadore Ducasse” (1920), a estrutura de cabides intitulada “Obstruction” (1920-71), ou “Cadeau” (1921-74) esse famosíssimo ferro de engomar com pregos, aqui representado nas suas diversas versões. Por tudo isto e muito mais, trata-se de uma exposição obrigatória e imperdível a fechar um século de atraso no reconhecimento de Portugal em relação ao espírito e à obra de arte de vanguarda.

 

(versão original: in Agenda Cultural de Lisboa, 1999)