1999 O ingénuo deliberado Jean Dubuffet

O ingénuo deliberado

 

O percurso artístico de Jean Dubuffet (1900-1985) é significativamente contrário às tendências fundamentais da arte do século XX. Com um apurado sentido da criatividade artística enquanto gesto de comunicação intersubjectiva, o artista francês recusou sempre pertencer a qualquer grupo, escola, ou tendência de afirmação colectiva. Se fez amizade com Fernand Leger nunca se reviu na análise cartesiana de desconstrução visual que caracterizava as investigações cubistas e pós-cubistas. A relação pessoal e artística que estabeleceu com outras figuras da cultura francesa, como Max Jacob, André Masson, Antonin Artaud ou Celine, nunca teve por base qualquer defesa da imagética surrealista ou qualquer outra herança estética ou de pensamento mais comum no período de entre guerras. Para Jean Dubuffet, a imagem pictórica deveria afirmar uma vontade expressa de ingenuidade e recusa de qualquer tipo de aperfeiçoamento técnico ou sequer filosófico.

Apresentando-se no início dos anos 40 enquanto defensor de uma “arte bruta” como última manifestação artística possível no quadro de valores quebrado pela II Guerra Mundial, Dubuffet potencia o traço vulgar, infantil e quase primitivo da pintura, cruzando a ideia de regeneração total a partir do exercício de um recomeço global da humanidade, apostando tudo na expressividade de composição que a linha e o traço rude, e por isso não construído com base nos conceitos de evolução e progresso culturais próprios da sociedade ocidental, permitem na confirmação de um estatuto visual em tudo contrário ao elitismo cultural que caracterizava a cidade Paris em meados do século, mesmo em plena guerra. O anti-eruditismo característico da obra de Dubuffet mantém-se ao longo de mais de meio século de actividade artística como valor fundamental de uma acção que reivindicou sempre um estatuto de afirmação ética da sua subjectividade, perscrutando uma complexificação entre valores humanos que estará muito para além do discurso lógico defendido pelo poder político e cultural deste século que agora termina. Em Jean Dubuffet, a imagem remete sempre para a ordem do irracional, na dialéctica do gesto primitivo como manifestação directa de um estado de espírito não aculturado pela história da arte ou pelo sistema do meio artístico.

 

(versão original: in Agenda Cultural de Lisboa, 1999)