2000 O inventário dos segredos Pires Vieira

O inventário dos segredos

 

Depois da série “Camuflagens”, recentemente exibida no espaço da Cesar Galeria, Pires Vieira apresenta agora no Centro de Arte Moderna um novo conjunto de desenhos de grande dimensão e de formato vertical, sugestivamente intitulado: “Talk to me”.

Realizados no decurso de 1997 e 1998, os desenhos-pinturas desta série reforçam a ideia de uma contínua investigação formal em torno do corpo, proposta, no entanto, numa espécie de inventariação fragmentária que inviabiliza necessariamente a revelação completa desse mesmo corpo e dos seus desejos. A partir de um extremo desenvolvimento formal, é na figura metonímica da orelha que Pires Vieira concentra a relação de forças estabelecida entre a abstracção formalista e uma figuração mais identificável. Por outro lado, a figura da orelha apresenta uma ambiguidade formal que a pode confundir igualmente com o sexo feminino – facto desde logo admitido, mas não previsto, pelo artista na excelente entrevista cedida a Miguel Wandschneider, e publicada no catálogo que acompanha a exposição. Mas para lá dessa identificação plural, é no confronto e no diálogo com os vários elementos formais presentes nestes desenhos que a orelha se revela enquanto conteúdo central e unificador de toda a série. Metáfora da violação do corpo, com uma fortíssima carga mitológica, alimentada desde logo pela auto-mutilação de Van Gogh, a figura da orelha reúne uma simbologia complexa que vai da autonomia à vulnerabilidade física dessa parte do corpo humano. Por esse via simbólica, Pires Viera procura explorar a dimensão pulsional das relações humanas, no convite expresso e permanente dessa orelha omnipresente que interioriza os “desejos reprimidos”, só contados em segredo, contrariando desse modo uma afirmação completa da personalidade.

Por isso, do convite à repressão, o envolvimento entre as formas desenhadas remete desde logo para uma estranha percepção da intimidade violada, ou nunca concretizada, e para uma confrontação da memória com a impossibilidade do equilíbrio espiritual. Tudo isto se apresenta, no entanto, num sentido analítico em relação ao qual as formas revelam o mínimo da sua identificação, sugerindo apenas, mantendo nesse jogo constante o valor essencial a todo o processo. Reforçando a atmosfera proposta pelo título da série, Pires Vieira procura ainda na poesia um aliado fundamental, vinculando a ideia de convite e desejo de intimidade entre as formas apresentadas e um verso de Walt Whitman: “fica comigo esta noite e ensinar-te-ei a origem de todos os poemas”.

 

(versão original: in Arte Ibérica, 2000)