Para o meu filho Pedro
Quase em câmara lenta, a cauda do jacaré nadava com esforço, serpenteando sem rumo pelo lago. Chateado com os limites do seu habitat e da própria vida, o jacaré refletia muitas vezes sobre a beleza do seu lago e a frustração de não ter mais ninguém com quem partilhar a experiência aquática daquelas cores pantanosas, tão belas e misteriosas. Por vezes, saía do lago e procurava outros animais para falar, ou melhor, para desabafar as suas angústias. Mas logo recuavam, com medo, todos aqueles que nele viam uma ameaça, fugindo sempre das suas investidas quase desesperadas. Afinal, ele só queria ter com quem falar um pouco, sentir a companhia de um amigo, mas não era fácil seduzir a fauna que habitava os arredores desse lago tão solitário e monótono. A única vez que conseguira convencer outro animal a vê-lo como amigo, foi quando a macaquinha precisou de atravessar o lago e ele, sem hesitar, a ensinou a nadar. Depois disso, ninguém mais se aproximou sequer das margens do lago e a infelicidade invadiu aos poucos o seu quotidiano.
O tempo passava veloz e triste, sem aventuras ou novidade… quando, num belo dia de sol, o jacaré ouviu, do alto de uma árvore, um estranho som. Parecia que o estavam a chamar. Mas como podia saber se era mesmo um chamamento? Não sabia bem de onde vinha esse som persistente que, no entanto, lhe parecia amigável. Saiu do lago, lentamente, para melhor perceber a origem daquele som e verificar se, com a sua aproximação, não acabava, como quase sempre, por se calar, mergulhando no silêncio distanciado e no medo. O som, todavia, manteve-se e o jacaré começou a animar. Ainda não conseguia ver o animal que o chamava, mas percebeu que havia ali uma porta aberta, uma aproximação. De repente, o guaxinim apresenta-se, destemido: “aproxima-te, não tenhas medo”. De boca aberta, o jacaré sacudiu a cauda perante tanta coragem. “Mas… estás a chamar-me para perto de ti, guaxinim?” – questionou o lamacento, surpreso, reconhecendo desde logo esse bicho que dá pelo nome de guaxinim. “Claro, preciso de ti. Tenho uma proposta para te fazer…”, declarou o guaxinim com uma confiança nunca vista. O jacaré tinha uma memória invejável e não demorou a fazer a ficha do corajoso: “O seu habitat são as florestas próximas à água e aos pântanos. Durante o dia, ele dorme em árvores ocas, buracos em pedras ou no chão. Os guaxinins são animais noturnos, caçam pássaros, ratos, insetos, peixes pequenos, lesmas, cobras, camarões de água doce e rãs. São omnívoros e a sua dieta também inclui ovos, nozes, cereais e frutas. O guaxinim dorme o dia todo e sai à noite para procurar comida. Persegue a sua presa em águas rasas ou no chão, arranhando, virando e examinando de perto assim que a vítima é capturada. No entanto, ele só a come se o cheiro o convencer que será uma boa refeição.”
A cabeça do jacaré parecia um computador, ou uma enciclopédia, continuando a descrever aquele que o desafiara: “Em áreas frias, os guaxinins passam o inverno em tocas e buracos nas árvores. Apesar de dormirem profundamente, eles não hibernam, saindo sempre de seu esconderijo assim que o tempo aquece um pouco.” Aí, o jacaré percebeu finalmente que o apelo do guaxinim até fazia sentido. Parou junto dele e, devagarinho, perguntou: “o que pretendes, meu caro guaxinim?» E este não perdeu tempo a explicar-lhe por que razão insistia em chamá-lo. Afinal, o guaxinim queria saber das maravilhas que se escondem no fundo do lago. Maravilhas que só o jacaré saberá descrever, mesmo que para isso tenha de ficar a contar histórias noite dentro. Aliás, o bicho atrevido estava disposto a arriscar tudo, chamando até si, com a persistência da sua voz fina, o jacaré ainda incrédulo. “Sou um bichinho da noite”, sussurrou o guaxinim, descrevendo ao Jacaré o sonho de ver debaixo de água para saber assim todas as coisas que acontecem na floresta, pois só lhe faltava o fundo do lago. Do resto da floresta, já tomara todas as notas. E ao Jacaré o guaxinim confessou, por fim, o seu grandioso projeto: tinha a ambição de escrever uma enciclopédia sobre a floresta e todo o seu habitat. Para isso, precisava da ajuda, da extraordinária memória, dos conhecimentos, da experiência e dos diálogos do jacaré. O jacaré ficou tão entusiasmado que a sua cauda não parava de se mover, para a esquerda e para a direita. Aqui estava a nascer uma nova amizade, e com ela muitas conversas e saberes. De tão entusiasmado, o jacaré lembrou o guaxinim: “mas tens de ouvir também a macaquinha, pois ela já mergulha no lago, depois de ter aprendido comigo a nadar!», disse com o orgulho de quem ajudou, para sempre, uma amiga inesquecível. O jacaré prometeu apresentá-los em breve.
Envergonhado, o guaxinim confessou por fim porque demorara tanto tempo a ganhar coragem para chamar o jacaré. Tivera de superar os seus medos, pois houve uma época em que não sabia se o jacaré era amigável, e se seria boa ideia pedir-lhe para contar os segredos do seu lago. Contou-lhe então como o chegou a confundir com um dinossauro. Tudo tinha começado, uma vez mais, num sonho bizarro, disse, contando com pormenor esse momento de memória e fantasia: “Estava a brincar junto ao lago, e quando já tinha montado o meu dinossauro de ossos fui para a minha árvore. Ouvi um barulho estranho, virei-me para trás e vi um olho gigante e uma cauda enorme, uma garra e uns braços minúsculos. Pensei que era um T-Rex. Depois atirei-lhe um pau e o T-Rex apanhou-o, como um cão. Sabendo que é carnívoro, pensei logo que ele iria comer-me. Mas, afinal, o dinossauro pôs-me às suas cavalitas e sorriu com aquele sorriso quase ameaçador. A vista era extraordinária daquela altura. Olhei e pensei que precisava de um amigo para explorar a floresta e tomar notas para a minha enciclopédia. Porém, depois caí no chão e desmaiei. Quando acordei, percebi que era um sonho, muito divertido por sinal.”
Depois de ouvir, enternecido, a história desse sonho, o jacaré, qual T-Rex emproado, abraçou com carinho o seu amigo guaxinim. Com esse gesto, procurava garantir-lhe que podia confiar nele, pois sempre desejara ter um amigo para partilhar os segredos do lago e agora, apesar das suas diferenças de força e de tamanho, tinha no guaxinim um confidente para a vida.
Liberto das angústias do início, e depois de reconhecer que falar com o guaxinim fora decisivo, o jacaré voltou ao lago com o coração cheio de alegria. Afinal, acabara de fazer mais um verdadeiro amigo. Sabia que daí em diante teria muitas conversar com o guaxinim, tinham agora não só muitas noites para refletir, como um projeto maior que os unia para sempre: fazer a enciclopédia da floresta. Quase leve, o jacaré deslizou rápido para o fundo do lago ao pensar que o mundo precisava, com urgência, de saber de tudo aquilo. O mundo e todos os bichos também!
FIM
[imagem: ilustração de Vasco Gargalo]