2014 O jacaré e o mochinho

O jacaré

 

Para o meu filho Dinis

 

Depois do lago, e um pouco para lá do território enlameado, começava a floresta. Cá e lá, o jacaré vivia a rotina desse vaivém, sempre ocupado com os seus afazeres solitários, entre o almoço e um banho de lama, sem prestar muita atenção aos arredores. De quando em vez, ouvia um estranho “Uuuu – u – uhuhuhuhu”, que vinha de longe e chagava ao ritmo disciplinado de um relógio. Sabia apenas que o som partia das profundezas da floresta como uma repetição, pois o eco fazia-se sentir até na superfície daquela água escura, após um ricochete enorme nas montanhas altas do lado oposto do lago. Após alguns dias de repetições cada vez maiores, o jacaré ficou intrigado com esses “Uus…” e pensou que gostaria de perceber qual era afinal o animal que tinha o poder imenso de fazer ecoar um simples “Uu” daquela maneira tão intensa e presente em todo o espaço da mãe natureza.

 

Numa das suas incursões pela floresta, para buscar amigos ou mesmo comida, o jacaré deu então com um mocho muito sereno que o olhava de frente, sem medo nem expressão de qualquer espécie… De óculos no nariz, do alto da sua postura sóbria mas elegante, o mochinho abriu o bico para, de um modo algo enigmático, dizer ao jacaré e a quem o quisesse ouvir: “só o silêncio nos pode salvar!” E repetiu, como se fosse mais um dos seus “Uus”: “só o silêncio nos pode salvar!” Surpreso com a postura definitiva da afirmação, o jacaré apressou-se a corrigir o mochinho: “Mas não há silêncio na floresta… ouvimos sempre os seus ruídos, o estalar das árvores, o trinar dos pássaros, os uivos dos lobos e até os teus próprios clamores…”

 

Porém, o mochinho insistiu, esclarecendo o jacaré teimoso: “só o silêncio (das palavras, sublinhou) nos pode salvar”, e acusou o jacaré de falar sempre de mais, de ter uma vida dupla, cá e lá, entre o lago e as suas margens, ou seja, entre o bem da sua vida na água e o mal de caçar, após longas conversas, outros animais quando se aventurava terra adentro. O jacaré tinha de reconhecer que a análise do mochinho estava mais do que certa. Apesar de parco nas palavras, o mochinho revelava uma sabedoria extraordinária. Falava pouco mas, quando falava, acertava quase sempre, ao contrário do jacaré, que falava muitíssimo… Uma vez mais, o diagnóstico estava perfeito, havia que aceitar estarmos perante um sábio muito discreto, que mereceu desde logo todo o respeito do jacaré.

 

Tal como acontecera com a macaquinha e com o guaxinim, o jacaré sentiu desde logo um grande desejo de se tornar amigo do mochinho, lembrando-lhe que partilhava com ele uma grande memória e a necessidade de saber o porquê das coisas, mesmo que por vezes se perdesse um pouco no recurso às palavras e acabasse por não revelar o rigor que o mochinho a todos exigia. O jacaré consultou a sua prodigiosa memória e disse com orgulho algumas das características do mochinho, as mais lembradas por todos: “certa tradição popular (disse o Jacaré) define o mocho como símbolo maior da sabedoria, da vigilância, da solidão contemplativa e da perceção minuciosa. Há centenas de anos surgiram os primeiros contos do mocho-sábio, em que a maturidade dos seus exemplos e o rigor das suas palavras o converteram num animal decisivo. Desde aí, os mochos parecem possuir uma função essencial: indicar um caminho, salvar o futuro da bicharada, ou mesmo da humanidade. Mas para isso (insistiu o jacaré junto do mochinho) tens de acreditar em ti e não teres medo de dizer o que tens a dizer, quando chega o momento certo. Da tua confiança poderá depender a vida de todos os animais e da nossa floresta.”

 

O mochinho pensou muito nas palavras do jacaré e compreendeu que, apesar da brutalidade nos gestos, este era um animal experiente e conhecedor de muitas histórias, capazes de esclarecer algumas das suas dúvidas. O mochinho pressentiu que o Jacaré, com as suas palavras muito palavrosas, estava afinal a tentar ajudá-lo a superar o obstáculo da sua timidez. Na verdade, o mochinho reconhecia que tinha uma tendência para ficar sempre atrás nas fotografias, ou deixar os outros animais falarem sobre tudo e, por vezes até, sobre si próprio, o que o deixava em desvantagem na vida da floresta, e na relação com todos aqueles que falavam muito e não compreendiam bem o valor do seu silêncio.

 

Com aqueles seus olhos gigantes e profundos, o mochinho fez um sinal ao jacaré, prometendo que, daí em diante, procuraria comunicar um pouco mais com os outros animais da floresta e fazer com que estes percebessem, finalmente, que há muitas formas de se ser feliz e que nem todos têm de estar sempre a palrar para se fazerem entender. Afinal, entre o silêncio e as palavras, o mochinho tinha o hábito de escolher o equilíbrio, ainda que este pudesse causar-lhe algum distanciamento perante a algazarra que povoava o dia-a-dia dessa floresta.

 

Aos poucos, e depois de algumas conversas marcadas quase sempre pelas muitas palavras do jacaré e as pouquíssimas, mas absolutamente certeiras, do mochinho, o jacaré conseguiu fazer do mochinho um animal mais falador e, sobretudo, mais confiante, ao mesmo tempo que apreciava, cada vez mais, o valor dos seus longos silêncios, da sua contenção nas palavras. No fim, o mochinho agradeceu ao jacaré, dizendo: “se fores sempre bom como tens sido comigo, estou certo de que, apesar dos teus defeitos, serás recordado pelas palavras que me ensinaste, enquanto as palavras tiverem fôlego e o fôlego tiver vida. Prometo que tudo farei para lembrar ao mundo o valor das tuas palavras e da tua amizade. Irei, por fim, ao encontro do guaxinim e da macaquinha para os convencer de que temos esta missão em comum, lembrar que há jacarés amigos dos outros animais e prontos a ajudar quando estes precisam…”

 

O narrador que nos conta tudo isto, acrescentou ainda uma última nota: “Escrevam aí na vossa memória: no fim desta história, o mochinho juntou-se ao guaxinim e à macaquinha, na promessa de viverem sempre como irmãos, apesar (ou pela razão) das suas diferenças. Perceberam então que as suas formas de vida, de ver e de estar no mundo, se completavam, assegurando assim um futuro melhor. Perceberam também que todos podemos e devemos ajudar-nos uns aos outros. Por exemplo, nas histórias que acabaram de ouvir, a macaquinha precisou do jacaré para aprender a nadar; o jacaré precisou do guaxinim para superar as suas angústias; o guaxinim precisou do jacaré para saber como era o fundo do lago. Por sua vez, o mochinho precisou do jacaré para ganhar confiança para falar, e mais ainda da macaquinha e do guaxinim para enfrentar o futuro como irmãos inseparáveis. Moral da história: na vida tudo se liga em laços mais ou menos visíveis e, para sermos felizes, precisamos de todos os amigos e da sua ajuda. Afinal, só nos resta aprendermos uns com os outros, termos como objetivo fazer da floresta, e do mundo, um lugar melhor, todos os dias das nossas vidas.”

 

FIM

 

 

[imagem: ilustração de Vasco Gargalo]