1998 O mundo português Mário Novais

O mundo português

 

De facto, a memória dos homens é semelhante àqueles viajantes fatigados que se desembaraçam de alguma bagagem inútil em cada paragem. Assim chegarão de mãos vazias e nus ao lugar onde vão dormir e serão, no dia do grande despertar, como crianças que nada sabem de ontem.

Marguerite Yourcenar, “O Tempo, esse grande escultor”, 1983

 

 

No Verão de 1940, a Europa era o palco da II Grande Guerra Mundial. Hitler estava no auge do seu domínio, e a França parecia ficar à sua mercê, depois de uma entrada triunfal em Paris. A Península Ibérica mantinha-se neutral em relação ao conflito, e a paz reinava em Lisboa, perante um sol radioso. Saint-Exupéry, escritor e piloto de guerra francês, de passagem pelo nosso país, podia então afirmar que a capital portuguesa oferecia a mais bela e importante exposição desse tempo.

Tratava-se da “Exposição do Mundo Português”, a grande realização do conjunto das comemorações do duplo centenário da independência nacional (1140-1640). Nas palavras do presidente do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e definidor da Política do Espírito, António Ferro, 1940 constituía o “ano das grandes realizações espirituais e materiais do Estado Novo”. Deste modo, o governo de Salazar pretendia associar a grandiosa manifestação nacional – que então se erguia na antiga Praça do Império – a essas duas datas decisivas da História de Portugal, procurando uma legitimação absoluta da sua política para o País. Via-se igualmente nessa exposição o coroamento de uma nova época de “ressurgimento” nacional, após séculos de declínio. Era o momento de todas as celebrações, comemorava-se sobretudo a história e a cultura portuguesas, bem como o seu desígnio pretensamente universalista.

Para tal, a afirmação de “um estilo português” no conjunto das manifestações artísticas deveria basear-se, tal como afirmava António Ferro, “num  nacionalismo vigoroso (acompanhado) pela necessária elevação e patriotismo”. Este clima de promoção de uma imagem nacional vinha sendo experimentado nos pavilhões oficiais portugueses representados nas exposições internacionais da década de 30. A inflexão no desenvolvimento da arquitectura modernista em Portugal, resultava agora sobretudo numa intenção oficial, temperada entre o modernismo e a tradição. A arte oficial, ou mais oficializada, estabelecera-se, até ao início de 40, a partir da acção e da política cultural de António Ferro que, suavemente, soubera assimilar e absorver a maioria dos nossos modernistas, desde a arquitectura à pintura, ou da decoração à fotografia. Esta estratégia de conciliação inviabilizara, ao mesmo tempo, um academismo conservador como o de Ressano Garcia, (vigente ainda nos salões oficiais), e um modernismo efectivamente independente, capaz de fugir às orientações da política geral do Estado Novo. Deste modo, Cottinelli Telmo pudera planificar o mapa arquitectónico da exposição distribuindo a autoria dos pavilhões temáticos pelos arquitectos que mais facilmente cabiam neste espírito celebrativo. De Cristino da Silva a Carlos Ramos, ou de Pardal Monteiro a Rodrigues Lima, a “Exposição do Mundo Português” ficava marcada também pela “definição” de uma arte, a partir daí, defendida como original e portuguesa. Por outro lado, e no quadro do dirgismo de uma imagem de Estado, Mário Novais fora convertido numa espécie de fotógrafo oficial, a quem seria encomendada a tarefa de registar – de forma a valorizá-la ainda mais – a grande exposição que então se promovia. As suas fotografias seriam o rosto da divulgação oficial, nas várias publicações das “Comemorações Centenárias”, dando sequência a uma colaboração que vinha já da década anterior.

Mário Novais, especialista já nesta altura na fotografia de obras de arte e arquitectura, surge assim como responsável, (tal como António Lopes Ribeiro, no Cinema) pela “imagem” do novo Portugal, ou melhor, pela imagem do poder oficial que a grande “Exposição do Mundo Português” representava.

Da cobertura da Exposição, realizada por Mário Novais, resultou um conjunto de fotografias – do qual se expõe agora um núcleo reduzido, entre interiores e exteriores (diurnos e nocturnos) – que assume uma importância documental decisiva. Não só para o reconhecimento visual dos pavilhões e dos momentos mais festivos do evento, como também para a identificação daquilo que poderíamos definir por uma estética fotográfica demasiado comprometida com o poder político. De qualquer modo, a encomenda não justifica, em absoluto, o convencionalismo de grande parte dos enquadramentos destas imagens. Ainda assim, há fotografias que se destacam pela positiva, nomeadamente, alguns exteriores (nocturnos) que significam uma feliz união entre a liberdade criativa do fotógrafo (e sua qualidade técnica) e as limitações inerentes à encomendação oficial e política.

Efectivamente, não podemos esquecer que estas imagens, tal como a própria Exposição, sugerem a aspiração de grandiosidade que se esconde por detrás de uma estética orientada pelos valores políticos e ideológicos do regime salazarista. A encenação do lugar é assim, também, expressão do programa e do projecto que o Estado Novo pretendia instituir, através de uma arte como imagem de valores estéticos conciliadores e de propaganda do Estado, aí se aproximando nitidamente da “esteticização da política” que Walter Benjamim já 1936 identificara na exuberância nazi. A propaganda, comum a todos os regimes totalitários de então, dirigia assim uma espécie de dimensão “plástica” do poder político, assumindo-o como representação estética associada às ideias mais seguras de “beleza e emoção” (Milan Kundera).

Contudo, a legitimação do regime político mediante a obra de arte – quer seja arquitectura, pintura ou fotografia – não é exclusiva dos regimes totalitários. De modo diferente, também a próxima Expo’98 será a expressão maior da celebração do regime actual, (democrático e pluralista), e com a qual será necessário e urgente fazer a comparação, política, estética e ideológica da Exposição de 1940. Neste sentido, critica-se aqui, desde já, o timing da presente mostra, bem como o facto de não se prolongar, pelo menos, até ao início da “Exposição dos Oceanos”.

 

(versão original: in O Independente, 6-3-1998)

 

(imagem: Mário Novais, Exposição do Mundo Português, 1940)