O vinho é uma das mais antigas culturas produzidas pelo homem. Nascida nos terrenos férteis de entre o Tigre e o Eufrates (os grandes rios da Mesopotâmia), a produção vinícola prolongou-se depois pelo Egipto, pela Grécia Antiga e Roma, até se tornar uma tradição do Mediterrâneo.
Hoje, o vinho sofre dos males da globalização, ou seja, precisa de aumentar não só o volume de produção, como a excelência da sua qualidade para saciar uma clientela massificada e cada vez mais exigente. Em todo o mundo, da América ao Japão, escanções e enólogos empedernidos buscam a verdade do vinho, (a outra face de “in vino veritas”), decantando o paladar num exercício de crescente especialização. O famoso “néctar dos deuses”, que inspirou Dionísio e as bacantes no delírio espiritual, é no entanto vítima de um processo perverso de industrialização desenfreada e quase sem regras, que exerce uma enorme pressão sobre as pequenas propriedades vinícolas do sul da Europa e do Mediterrâneo (Borgonha ou Sardenha) que resistem, a todo o custo, às investidas do grande capital financeiro dominado pelos americanos da Califórnia (Napa).
O realizador Jonathan Nossiter procura com “Mondovino” (um documentário perspicaz e bem conduzido) perscrutar esse conflito explosivo que existe desde os anos 80 entre a “burguesia rural” de uma Europa conservadora e tradicional, que preserva a densidade de uma riqueza cultural maior, e o poder dos produtores norte-americanos, ávidos de um lucro fácil, explorado à escala do planeta (de Napa à Toscânia ou à América do Sul). Mas não se pense que Nossiter elabora apenas um simples documento maniqueísta, que visa apontar o dedo ou crucificar estratégias políticas e económicas. Muito pelo contrário, “Mondovino” guia-nos por entre uma imensa recolha de depoimentos, capaz de esclarecer os valores de ambas as contendas, sem declarar qualquer compromisso definitivo.
O requinte deste filme documentário percebe-se ainda, para lá do valor do próprio tema, pela forma como aborda cinematograficamente cada um dos intervenientes nessa espécie de diálogo indirecto estabelecido entre os vários interesses. Desse modo, Nossiter filme a família Mondavi, os maiores representantes da indústria californiana que desejam um dia “fazer vinhos em Marte”, como uma sucedâneo muito particular da família Corleone, protagonista de “O Padrinho” de Francis Ford Coppola; absorve o fino recorte de Battista Collumbi (pequeno produtor da Sardenha) como se fizesse uma homenagem à aristocracia de Luchino Visconti ou à paisagem humanizada de Roberto Rossellini; ouve a experiência sincera de Herbert de Montille (produtor da Borgonha), apresentando-o como um “libré-penseur” saído de “A Regra do Jogo” de Jean Renoir ou um Asterix pronto a enfrentar o Império Romano; assim como expõe Michel Rolland (o enólogo mais famoso desta nova indústria vinícola “micro-oxigenada”), Robert Parker ou a “Wine Spectator” (o crítico e a revista de vinhos mais respeitados e influentes em todo o mundo) como heróis modernos de um planeta que não pára de rodar em direcção ao capital e à exponenciação da produção vinícola. Unindo a “verdade” do documentário com a “paixão” da cinefilia, Jonathan Nossiter – que já realizou filmes de ficção e trabalhou como escanção em restaurantes de Nova Iorque – chegou a um registo de grande humanismo e sedução, de paladar bastante agradável e perene, como a memória dos grandes vinhos.
“Mondovino” (EUA, 2004) ***
Realização: Jonathan Nossiter
Com a participação da família Mondavi, Herbert de Montille, Aimé Guibert, Battista Collumbu, Michel Rolland e Robert Parker.