Sombra, tinta do Sol.
Guillaume Apollinaire
Desde o primeiro momento que a materialidade do trabalho artístico de Lourdes Castro apresenta uma subtileza quase diáfana, tanto no seu aspeto formal ou volumétrico como na sua expressão de criatividade e comunicação, num arco de soluções práticas que vai do objetualismo reciclado dos anos 60 à poetização e materialização estética da sombra, esse perfil cósmico com que a artista sempre se identificou.
Nascida no Funchal em 1930, Lourdes Castro licenciou-se em Pintura na Escola de Belas Artes de Lisboa, em 1956. No ano seguinte, partiu com René Bertholo, Costa Pinheiro e outros jovens artistas portugueses subsidiados pela Fundação Gulbenkian, para a cidade alemã de Munique, fixando-se poucos meses depois em Paris, já em 1958, acompanhada dessa vez apenas por René Bertholo. Juntos fundaram a revista KWY (1958-1963), referenciando um grupo heterogéneo: para além dos fundadores, ainda os portugueses Costa Pinheiro, João Vieira, Gonçalo Duarte e José Escada; o búlgaro exilado em Paris, Christo, e o alemão Jan Voss. Impressa em serigrafia, a KWY durou seis anos e cumpriu-se nos doze números saídos na intermitência das possibilidades circunstanciais, nas múltiplas colaborações dos seus elementos constituintes e amigos — pintores, poetas, escritores, críticos e historiadores — com os quais mantinham e desenvolviam afinidades artísticas. A estética dominante desses anos traduzia-se no desenvolvimento de uma pintura abstrata de raiz informalista, à qual se seguiria um lento mas progressivo regresso ao figural, constituindo assim uma neofiguração. O grupo KWY apresentou-se ainda, na sua vontade de afirmação internacional, em quatro exposições (Saarbrücken e Lisboa em 1960, Paris e Bolonha em 1962).
Lourdes Castro foi um dos elementos mais ativos deste grupo, desenvolvendo desde então um percurso artístico bastante coerente, baseado no abandono dos suportes e das disciplinas mais tradicionais, optando antes por um trabalho interdisciplinar iniciado em assemblages de origem neodada, contextualizadas ainda pelo Nouveau Réalisme francês, nas quais a acumulação arbitrária de pequenos objetos em caixas sofre uma monocromatização uniforme de tinta de alumínio. A aura dessa forma conferida ao novo objeto criado tenderá a converter-se num processo de afirmação subtil em torno do perfil possível de objetos e pessoas contornadas apenas pelas suas «Sombras», temática de referência essencial a partir do início dos anos 60 e que se manterá constante, prolongada até hoje em múltiplas variantes.
Seja na produção de objetos de diversa origem, cor e materialidade, ou em instalações ou assemblages de cariz intimista, as suas Sombras Recortadas, assim como as Sombras Projectadas (na vertical, sobre a parede ou sobre a tela), os orientalistas Teatros de Sombras ou as Sombra Deitadas (na horizontal, sobre lençóis), constituiriam as modalidades essenciais do seu amplo conceito de «Sombra», numa peculiar reinvenção criativa e artística, que definiu a sua imagem autoral desde os anos 60 e 70.
Em lençóis bordados e expostos na horizontal sobre colchões, que ganham desse modo uma rara evanescência, em plexiglas, papel, plástico ou acrílico fluorescente recortados ou pintados, Lourdes Castro amplifica a dimensão bidimensional da ideia de quadro, conferindo-lhe uma nova espessura ou tridimensionalidade visual, aí se paradoxalizando o conflito artístico da época, entre a objetualização e a desmaterialização da arte, dessa forma abandonando a questão, antes primordial, da representação. Esta só interessa à artista na perspetiva de uma subtileza vital, como um espectro no limiar da passagem, o ínfimo registo na longa temporalidade.
Tal como Goethe havia defendido a existência das «sombras coloridas» na sua Teoria das Cores, Lourdes Castro parece seguir essa intuição, objetualizando através de um cromatismo intenso, sugerido pelos materiais empregues, a sombra dos elementos constituintes da vida e da natureza, ou ainda a sombra da sombra, remetendo finalmente para uma reflexão sobre o tempo e a memória ditada pelo efeito da luz nos objetos (naturais ou construídos), revelando essas sombras como marcas imateriais de uma ausência, de um rasto de vida que se poetizou na leveza do gesto presencial. Nessas caixas-objeto-quadro, a sombra recortada e exposta em relevo nessa espécie de «caixa de ar» relativamente à sua base original, promove assim um efeito de curto-circuito em torno do lugar da sombra, dado que esta se apresenta aí na sua dupla dimensão (representativa e objetual), pois a sombra projeta a sua própria sombra numa tautologia de rigorosa (in)visibilidade. Por outro lado, o perfil recortado das figuras humanas dessa forma apresentadas, sublinha, paradoxalmente, a opacidade visual sobre o ser humano, sintonizando-se assim com uma das teses mais contemporâneas da segunda metade do século XX, a foucaultiana «morte do homem», enquanto conceito abstrato sobre o estudo e as consequências das “humanidades”, essa invenção recente criada pelas ciências sociais.
As silhuetas e as sombras da década de 1960 seriam aprofundadas durante os anos seguintes, numa colaboração vital com Manuel Zimbro, como em As Cinco Estações (1976) e Linha do Horizonte (1981). Desde o início dos anos 1980, Lourdes Castro desenvolveu uma série de desenhos intitulados Sombras à volta de um centro, que prolongam, agora recrutando «objetos» da natureza, o sentido reflexivo sobre a infinidade cósmica e o destino da vida, numa interpretação colada ainda à tradição cultural romântica e orientalista.
Em 1988, o registo sobre a acumulação não se fazia já com os objetos da sociedade de consumo, mas com inúmeras pétalas de gerânio, num trabalho sintomaticamente intitulado Montanha de Flores. Exercício que segue um processo de trabalho iniciado em 1972 com O Grande Herbário de Sombras, cuja simplicidade técnica — colocar cem espécies botânicas diretamente ao sol sobre papel heliográfico — traduz uma subtil leitura sobre o poder da natureza na construção da imagem impressa, irmanando aí, de um modo profundo, a luz e a sombra.
Outro modelo de captação do real através da passagem do tempo e das suas sombras traduziu-se na realização de inúmeros Álbuns de Família desde, pelo menos, 1965. Aí, a artista colou fotografias, postais, pequenos recortes de revistas ou jornais, tecidos, ramos, folhas ou pequenos objetos reinventados na sua expressão estética e memorialista. Apesar de resolvidos a partir da sua dimensão privada, esses «Álbuns» converteram-se eles próprios em objetos artísticos, pontuando a centralidade processual e espiritual da «Sombra» no universo artístico de Lourdes Castro. Sublinhe-se ainda que, a partir dos anos 80, esses «Álbuns» seriam partilhados com Manuel Zimbro, não apenas do ponto de vista da vida quotidiana e da sua memória, mas também na sua dimensão criativa e estética.
Em 2000, Lourdes Castro receberia o Grande Prémio EDP Arte, depois de ter participado na Bienal de São Paulo desse ano com uma peça realizada em colaboração com Francisco Tropa, onde um imenso pano branco pousava sobre uma longa mesa fortemente iluminada de forma a sublinhar os vincos das dobras dessa cobertura. Com a aproximação dos observadores à curiosidade dos pormenores desse modo revelados, as sombras que de imediato se projetavam produziam assim uma espécie de fantasmagoria da memória, confirmando este como um exercício absolutamente vital ao trabalho artístico de Lourdes Castro.
Ao contrário de Peter Schlemihl — a famosa personagem criada em meados do século XIX por Adelbert von Chamisso[1] —, a artista não vende a sua sombra, antes persegue a sua poética ou a sua despojada dimesão estética e existencial, procurando nos seres e nos objetos que a rodeiam o auxílio necessário à tarefa infinita de reunir todas as sombras que a inspiram.
Em entrevista a um programa da RTP, em 1970, Lourdes Castro confessava: «Já não sei quando comecei a fazer as sombras e a olhar para as sombras, talvez há dez anos. E porque é que comecei a olhar para as sombras? Porque é assim uma coisa que desprezamos, a que não se dá importância. Mas para mim é muito importante, cada vez mais importante. É engraçado que eu não gosto nada de falar, deve ser porque as sombras são silenciosas…» Em discurso direto, na primeira pessoa, a artista identifica-se com uma existência de sombra, acrescentando: «A sombra tem tudo o que tem o objeto e o mínimo possível para ser reconhecido, apenas o contorno…»[2] Subtil e tímida, mas sempre presente, como uma sombra perante a luz.
(primeira versão do texto in Arqa – Revista de Arquitectura e Arte, n.º 53, janeiro 2008)
(imagem: pormenor de Lourdes Castro, Sombras de Lourdes Castro e René Bertholo, projetadas na parede, Rue des St. Pères, Paris, 1964)