“É preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma”. Com esta famosa frase, Giuseppi Tomasi de Lampedusa, aristocrata italiano que escreveu um único romance, precisamente “O Leopardo”, reforça a sapiente serenidade existencial de Dom Fabrizio, o Príncipe de Salina, que identifica sem mácula nem ilusão de que barro é feito o homem. Nem santo, nem o diabo, apenas um animal que se adapta às circunstâncias, conforme os casos, com maior ou menor dignidade. Se o leopardo é um animal felino que sabe usar o padrão do seu pêlo para dissimular o ataque à presa indefesa, o homem é esse efeito de metamorfose milenar que prima sobretudo por um apurado instinto de sobrevivência.
Apesar de o início dos anos 60 ter revelado a “Nouvelle Vague” ou o cinema experimental, o filme que Luchino Visconti (outro aristocrata) adaptou do título literário de Lampedusa é afinal uma obra-prima absoluta, lançando em mais de três horas (na versão original italiana) esse perfume próprio dos grandes clássicos, ao narrar uma visão desapaixonada sobre as virtudes e misérias do ser humano. Por isso, Dom Fabrizio (numa elegante interpretação de Burt Lancaster) evolui como espécie de alter-ego de Visconti, e antes do próprio Lampedusa, um ser reflexivo e tolerante que aceita o destino como uma transcendência de outra ordem, para lá das lutas de classe e das ideologias (religiosas ou seculares) que afectam o homem na sua trajectória inevitável.
Com efeito, o Príncipe de Salina, senhor de uma boa parte da Sicília de meados do século XIX, vê nos “camisas vermelhas” do revolucionário Garibaldi uma energia efémera, apenas momentânea. Quando o seu querido e amado sobrinho Tancredi (Alain Delon) participa entusiasticamente nas campanhas militares de Garibaldi, o aristocrata siciliano apoia-o secretamente, não por razões políticas, mas por reconhecer nessa vontade de acção radical a energia da sua própria juventude. No crepúsculo da vida, Dom Fabrizio observa com tranquilidade, nostalgia e magnificência, na metáfora do seu próprio observatório, a azáfama das espingardas organizadas em nome da nova ideologia revolucionária que tudo promete com a chegada da nova ordem política de uma Itália por fim unificada, depois da expulsão definitiva dos Bourbon. Ele sabe que tudo tem o seu tempo, e que tudo muda, na aparência, para que tudo enfim possa permanecer mais ou menos na mesma. Ou como dissera na época o próprio Visconti: “O Príncipe de Salina sabe que pertence a uma classe condenada a morrer. Por isso, no final, só vê a morte à roda dele”, como nessa extenuante e longuíssima festa onde a valsa embala a morte lenta das elites aristocratas sobreviventes. Afinal, tudo se resume a um efeito deceptivo que Visconti projecta nessa figura crepuscular e finalista, espécie de consciência pesada da classe política italiana que nunca soube lidar com a Sícilia e o sul do país: “Nunca lhe demos a ajuda que lhe prometemos. O movimento que libertou a Sicília dos Bourbon triunfou, como todas as revoluções, por causa de promessas feitas ao povo. Só que, como sempre, essas promessas não foram cumpridas. Garibaldi agiu com boa fé, mas os oportunistas latifundiários rapidamente aproveitaram a situação de mudança em benefício próprio, instalando uma nova opressão burguesa. Ao longo de séculos de escravidão, a Sicília continua a jazer numa espécie de torpor e a Máfia persiste como gangrena que alastra…”
Sofrido testamento de classe que une Visconti, Lampedusa e o Príncipe de Salina, “O Leopardo” é sobretudo, como nos recorda João Bénard da Costa, “uma pungente meditação sobre o efémero da beleza, da arte, da juventude e do sexo”, com a morte a pairar sobre Fabrizio e a sua mundividência, na consciencialização maior sobre a necessária passagem de testemunho entre gerações, regimes e ideologias, “pathos” da eterna voragem do tempo.
“Il Gattopardo/O Leopardo” (Itália, 1963) * * * * *
Realização: Luchino Visconti
Actores principais: Burt Lancaster, Alain Delon, Claudia Cardinale,
Rina Morelli, entre outros
(in Vida Ribatejana, 22-3-2006)