2005 O relatório da nossa sexualidade Bill Condon

O relatório da nossa sexualidade

 

O sexo é talvez ainda hoje o principal tema tabu da humanidade. Desde a noite dos tempos que a procriação, a descendência e o prazer sexual conflituaram em prol de uma conduta. Inúmeros rituais, cerimónias e mitos construíram uma cultura vastíssima e, por isso, bastante complexa em torno da sexualidade e dos seus comportamentos. Quando a racionalidade científica procurou observar o fenómeno, sobretudo a partir do final do século XIX, de imediato se levantou um coro de protestos em defesa da “moral” e dos “bons costumes”. Com efeito, mesmo ao longo do século XX, a análise objectiva das práticas sexuais humanas esbarrou quase sempre numa parede de incompreensão e escândalo. Apesar dos muitos progressos verificados nesta matéria, todos sabemos quanto a manifestação da sexualidade mantém ainda, para além da desinformação moralista que nos rodeia, uma aura de profunda inacessibilidade, quer pela sua secreta intimidade, quer ainda pelo seu valor idiossincrático, de comunhão com a essência da personalidade de cada um de nós.

Foi em 1948 que o Professor Alfred Kinsey impressionou o mundo com a publicação de “Sexual Behavior in the Human Male” (“O Comportamento Sexual do Homem”), o famoso “relatório” que tornaria Kinsey numa referência para a comunidade científica, mas também numa figura socialmente controversa e, na opinião dos mais conservadores, num homem bastante “perigoso”. Isto porque Kinsey (protagonizado por Liam Neeson) teve apenas a coragem de tomar como objecto de análise, aplicando toda a panóplia metodológica então disponível, o universo (tão íntimo quanto plural) das práticas sexuais dos seres humanos, partindo neste caso do comportamento dos homens adultos norte-americanos. A vida de Kinsey, nomeadamente, a sua ascensão e queda em torno da esperança de uma maior e mais rigorosa informação sobre a sexualidade humana constitui o “leitmotiv” do último filme de Bill Condon, realizador responsável por outro controverso “biopic”, esse “Deuses e Monstros” (1998) que abordava a vida de James Whale, o pai de Frankenstein. De novo atento a uma figura marcante e polémica, Condon produz desta vez um filme mais ousado do ponto de vista narrativo, mas ao qual falta ainda uma outra profundidade e alcance, para mais quando o visado é Alfred Kinsey, responsável por um autêntico terramoto moral na América do pós-guerra, precisamente quando o anticomunismo militante e a vigilância moralista do período “McCarthysta” faziam dos EUA um dos países mais conservadores e anti-liberais do Ocidente.

Numa segunda fase, o projecto de Kinsey viria a sofrer um enorme revés, quando ousou tomar como objecto de estudo a sexualidade da Mulher. A dimensão moral que em torno desse “novo relatório” se estabeleceu viria a diminuir o entusiasmo da imprensa e a consequente perseguição ao êxito científico do estudo começou pela sabotagem orçamental, com o recuo da Fundação Rockefeller, que até aí tinha patrocinado o “inquérito”. Apesar da menor visibilidade que sofreu desde então, o trabalho pioneiro deste obstinado cientista viria a contribuir decisivamente para a “revolução sexual” dos anos 60 e 70 do século passado. O seu legado é ainda hoje crucial para o estudo da sexualidade contemporânea. Aliás, foi precisamente contra o preconceito social que Kinsey elevou a sua voz, procurando dissecar a matriz plural dos nossos comportamentos sexuais, demonstrando que nesta matéria a maior preocupação do ser humano é ser feliz, mantendo contudo o vínculo com a moral dominante. Em todas as fases do inquérito, depois de confessadas algumas das “perversidades” praticadas, uma questão prevalecia no espírito dos entrevistados: “serei normal?”. Tal como nos alertou Alfred Kinsey no final dos anos 40, é a noção de normalidade social, de integração e aceitação na comunidade que favorece uma prática sexual pouco matizada, contrariando alguns dos nossos impulsos mais naturais. Todavia, resta-nos sublinhar que os estudos de Kinsey abordaram apenas a prática sexual dos humanos e não o amor ou os sentimentos a ele associados, distinção absolutamente necessária e essencial para afastar o falso moralismo que ainda hoje domina esta delicada questão.

 

“Relatório Kinsey” (EUA/Alemanha, 2004) **
Realização: Bill Condon

Actores principais: Liam Neesom, Laura Linney, Chris O’Donnell

 

(in, Vida Ribatejana, 9-3-2005)