Com a elevação de espírito e a elegância formal dos grandes clássicos, Clint Eastwood volta a filmar uma obra-prima absoluta. Depois desse extraordinário e gritante “Mystic River” (2003), no qual a amizade e o amor se perdiam, em catadupa emocional, no labirinto da verdade, Eastwood relança uma outra grande discussão moral sobre o valor da vida e da sua manipulação humana: a Eutanásia (tema ainda do último filme de Alejandro Amenábar, “Mar Adentro”).
Vestindo a trama narrativa com um dos temas tabu mais inquietantes da actualidade, “Million Dollar Baby” – que em Portugal recebeu o subtítulo de “Sonhos Vencidos” – restitui ao amor e à fé uma centralidade arrebatadora, construída em torno de uma galopante cumplicidade que implica ainda esse derradeiro acto de misericórdia que é, ou pode ser, neste caso, a Eutanásia. Contudo, Eastwood não promove aqui qualquer moralismo sobre a questão, antes a relaciona com uma “outra” e mais íntima verdade, inspirada numa confiança e respeitabilidade crescentes, que só a dois se pode estabelecer e cultivar. Por isso, o tema da “morte assistida” releva da humanidade magistral de um amor entre este “pai” e esta “filha” (ambos sem família funcional), tutor e aprendiz que, desse modo, desenham a perspectiva mais abrangente de algo que não pode, na verdade, ser reduzido à sua forma legal, mas deve sobretudo ser desenterrado, de uma vez por todas, com o objectivo de ampliar o debate sobre a sua humanidade, desde a matriz das suas motivações aos seus efeitos e consequências.
Entre a inicial e aparente banalidade do “filme de boxe” e o intenso e arrojado “melodrama” do seu final, Clint Eastwood realiza aqui uma profunda visão em torno do sonho de vencer, controlado pela a astúcia tranquila de quem apresenta a maior das maturidades (humana e profissional), e pode assim falar da obstinação e do empenho necessários a qualquer vitória na vida.
Com um desempenho que lhe poderá valer o Óscar para Melhor Actriz, Hilary Swank encarna a inocente “boxeur” Maggie Fitzgerald, uma mulher determinada que, contrariando o seu infeliz e rotineiro trabalho de empregada de mesa, apenas se realiza de luvas de boxe nas mãos, sabendo por isso, intuitivamente, a força que lhe estrutura um laivo de esperança na vida. Frankie Dunn (Clint Eastwood), o mestre que mais tarde lhe ensinará os truques do ringue, recusará de início qualquer ligação a essa jovem que persiste e frequenta todos os dias, religiosamente, o seu ginásio. Esta será ajudada por Morgan Freeman (compagon de route de Frankie) nessa etapa inicial de aproximação ao “sonho”, perante uma modalidade desportiva ainda muito marcada por uma certa masculinidade canónica. Rendido finalmente à obstinação de Maggie, Frankie segue uma vez mais o seu instinto – depois de abandonado por um antigo pupilo que o trocara por um “manager” mais ambicioso, após muitos anos de treino e promessas – aceitando treinar a futura e meteórica campeã de boxe feminino.
Mas se a primeira metade do filme se desenrola numa aparente normalidade narrativa, expondo “o sonho de vencer” que une uma jovem determinada a um velho treinador que parecia entregue ao fim da sua carreira, a segunda metade produz um efeito quase devastador em tudo aquilo que até aí nos mantera presos ao ecrã. Como num combate de boxe, vamos ao tapete e ficamos sem reacção, tal a violência do golpe desferido. Depois da ascensão de Maggie, um “acidente” de ringue coloca-a para sempre numa cama de hospital, sem hipótese de recuperação. Frankie, dividido entre a sua antiga função de enfermeiro e a igualmente ausente tarefa paterna, trava uma luta com a sua consciência para não obedecer ao último pedido da infortunada “boxeur”. Se desde a “perda” da sua filha verdadeira (numa história nunca esclarecida de afastamento deliberado), Frankie passara a frequentar a igreja local na esperança de encontrar um sentido religioso para a vida, perseguindo inclusive o reverendo com incómodas questões teológicas, acaba por ver no pedido de Maggie o mais importante desafio da sua vida, um sinal entre a provação e a redenção do amor que o une a essa jovem que ele ajudou a ser uma campeã e que com o seu exemplo lhe devolvia agora a oportunidade de revelar toda a sua coragem e determinação. É assim da intensa mas inadiável decisão de Frankie que se eleva a mais profunda, despojada e catártica espiritualidade de “Million Dollar Baby”, impregnando-a ao mesmo tempo de uma humanidade singular que nos revela a integridade maior dos verdadeiros campeões.
“Million Dollar Baby – Sonhos Vencidos” (EUA, 2004) *****
Realização: Clint Eastwood
Actores principais: Clint Eastwood, Hilary Swank
e Morgan Freeman
(in Vida Ribatejana, 2-3-2005)