Sydney Pollack é talvez o último cineasta capaz de tocar vários “instrumentos”, circulando desde o início da sua carreira, nos anos 60, pelos vários géneros cinematográficos com uma destreza profissional bastante assinalável, saltando do registo da “comédia” (“Tootsie”, 1982) para o “drama romântico” (“África Minha”, 1985), ou do “Western” para o “thriller político”, quase sempre com o mesmo sucesso bem comportado.
Ecoando ainda, de algum modo, o espírito do mais brilhante “thriller político” de Sydney Pollack, “Os Três Dias do Condor” (1975), “A Intérprete” surge como uma espécie de regresso a essa atmosfera de suspense urdido na intriga política. Nesta medida, o último filme de Pollack parece resgatar o tipo de narrativa que Hitchcock apresentara no final dos anos 50, no auge da Guerra-Fria, em “Intriga Internacional” (1959), e que partia precisamente de uma história de espionagem desencadeada no próprio edifício da ONU, então vedado (no seu interior) a qualquer ousadia de Hollywood. Há ainda em “A Intérprete” uma outra referência a mestre Hitch e ao seu filme “O Homem Que Sabia Demais” (na versão de 1956), na coincidência de uma atroz perseguição a um estadista que sabia demais sobre algo que para o público pouco mais era do que nada, ou seja, o famoso “McGuffin” hitchcockiano. Agora, é Sylvia (Nicole Kidman), a intérprete protagonista, que sabe demais e acaba perseguida, perseguindo ela também a razão do seu desejo de vingança. Contudo, as semelhanças acabam por aqui, pois a excelência formal e a envolvência romântica, tão marcantes em Hitchcock, perdem em Pollack todo o encanto, convertendo-se apenas numa sofisticada actualização desses clássicos modelos narrativos, espécie de dispendiosa nostalgia.
Apesar de todos os esforços de Pollack para vestir os personagens e a trama que os une, a narrativa política deste filme jamais consegue ganhar uma forma clara e envolvente. Porém, os sussurros ouvidos pela intérprete-tradutora da ONU, bem como as suas repercussões na actual crise política internacional – com uma mais do que óbvia e intencional piscadela de olho aos valores de diálogo e pacificação mundial fundadores do projecto ONU – não passam de um pretexto para desenhar uma mensagem crítica sobre a actuação dos extremismos, quer eles tomem a forma dos ataques terroristas da Al-Qaeda ou a prepotência unilateralista da administração Bush. Sydney Pollack toma o partido do pacifismo, lembrando o papel essencial da ONU no equilíbrio político do nosso planeta. Aqui, a conspiração e a guerra política entre um lidere e os correspondentes opositores de uma imaginária e matafórica república centro-africana (numa analogia que mistura o desgoverno do Zimbabwe de Robert Mugabe com os conflitos étnicos do Ruanda), converte-se numa bandeira politicamente correcta que aponta o dedo aos extremismos de toda a espécie e apresenta como alternativa a hipótese de uma acção concreta do Tribunal Penal Internacional de Haia, convertendo ainda os serviços secretos norte-americanos (protagonizados no filme por uma equipa liderada pelo próprio Sydney Pollack – o que não constituirá apenas um pormenor – e que tem em Sean Penn o agente capaz de ouvir os “sussurros”, ou os motivos mais profundos da intérprete protagonista) não num bando ao serviço de uma América fanática, mas num grupo de investigadores criminais que obedecem igualmente ao Direito Internacional, o tal que deveria reger e orientar efectivamente a acção de todas as nações. No fundo, é apenas isso que importa neste filme de vozes sussurradas, entre as que ameaçam (ou simulam ameaçar) a vida de um lidere africano de visita à ONU, as vozes dos inocentes de todas as raças humanas que se concentram simbolicamente no desespero de sofrimento e vingança de Sylvia (também ela filha de diferentes etnias, que após uma tragédia familiar percorre a sua própria via sacra até atingir a redenção e a liberdade), ou ainda, e sobretudo, essa voz marcadamente sussurrante que é a da ONU, e que pede apenas mais respeito e consideração por parte de um país como os Estados Unidos, pioneiro no desenvolvimento não apenas da infortunada Sociedade das Nações, logo após a I Grande Guerra, como também, em conjunto com os países aliados que acabaram por vencer a II Guerra Mundial, da própria Organização da Nações Unidas. Não por acaso, e no preciso momento em que a Administração Bush procura dominar ou mesmo eliminar o pluralismo fundador da ONU, Koffi Anan abriu pela primeira vez as portas do edifício sede ao registo cinematográfico, encontrando em Sydney Pollack um aliado perfeito para a sua estratégia de reabilitação institucional.
“A Intérprete” (EUA, 2004) **
Realização: Sydney Pollack
Actores principais: Nicole Kidman e Sean Penn
(in Vida Ribatejana, 4-5-2005)