2005 o verdadeiro amor Lars von Trier

o verdadeiro amor

 

É sempre de crer num filme como este, sobretudo se adoptarmos, sem preconceito, uma postura ascética e despojada. E assim, na plena e incondicional afirmação da sua presentificação e experiência, só nos restará assistir ao sacrifício que é o amor. Sacrifício significa aqui algo de natural, como o abandono do que nos liga à comunidade, quer esta seja religiosa ou não, ou ainda a assunção, como inevitabilidade maior, do que une verdadeiramente duas pessoas que se amam e que, no limite, as poderá conduzir à maior prova de amor possível: a morte em seu nome.

Na figura de Bezz (Emily Watson, numa interpretação memorável) a loucura existe desde o início como algo reconhecível aos olhos de todos (personagens e público), em franca inocência que cedo nos impressiona. Mas com o desenvolvimento e familiarização dos personagens centrais, Jan (Stellan Skarsgärd) e Bezz – o casal recém-casado – percebemos finalmente o forte carácter de união deste casal, apesar das suas personalidades assimétricas deixarem no ar uma certa dúvida quanto ao desfecho da narrativa.

Mas de que amor se fala aqui? Não há resposta para lá do plano final do filme. Na relação entre o amor terreno e o milagre da sua consumação final existe uma precária fronteira que alimenta aquilo que julgávamos perdido ou distante do homem: a fé, ou a essência do seu valor primordial.

A fé é o amor que em potência residirá em todos nós, se conscientes da sua extraordinária capacidade de afirmação, tantas vezes coarctada pelo delírio social expresso pela lei, a regra, a palavra escrita ou o dogma religioso. A fé é a sublimação da nossa voz interior, aquela que julgamos pertença de um qualquer Deus sem rosto mas sempre omnipresente em nós próprios, assim como nos outros. A fé resulta das experiências da nossa vida, do limite que será vivê-la segundo a única regra da felicidade: o nosso coração, soberana dádiva da natureza.

Alguém caracterizou a mensagem deste filme como próxima de uma espécie de “religião do amor”, indirectamente resumindo o conflito sempre presente entre o amor divino e o amor carnal e humano, eterna “via-sacra” que comunga com a existência humana o mistério da sua condição. Aqui, a essência de Deus, ou de um transcendente, reside sobretudo no espírito humano como o outro daquilo que nos anima e ao nosso coração atribui dinâmica e energia. Afinal, o grau de irrealidade que reconhecemos na expressão da voz de Deus, através do corpo de Bezz, permite-nos perceber tratar-se da sua própria voz como representante do ideal a viver, segundo a conduta, progressivamente assumida, desta jovem dividida entre a palavra de Deus (fixada nos reduzidos ditames da religião praticada) e a palavra do Amor que sente o seu coração. A disputa entre um e outro amor dá lugar a uma extraordinária afirmação do amor humano, numa clara e subversiva analogia entre a vida de Cristo e a de Bezz. Do calvário à subida aos céus, os sinos anunciam a vitória da pureza e o milagre raro que é o verdadeiro amor, mesmo que para isso, tal como fez Bezz, se tenha de sacrificar não apenas a Moral, na assunção do valor da sexualidade praticada com o amado e, depois, na inesperada mais inevitável prática da prostituição, como o Corpo, manifesto na agressão que sofre na sequência dessa última prática e, finalmente, a Vida, corolário de um caminho a percorrer para que outra vida se salve, a do ser amado, desse modo salvando-se, igualmente, o amor dos amantes, a partir daí eternamente juntos e inseparáveis.

 

“Ondas de Paixão” (Dinamarca, Suécia, França, Holanda e Noruega, 1996) *****
Realização: Lars von Trier

Actores principais: Emily Watson, Stellan Skarsgärd, Katrin Cartlidge

e Jean Marc Barr

 

(in Vida Ribatejana, 6-4-2005)