2004 Os fantasmas Jacques Rivette

Os fantasmas

 

Tal como os personagens que nele habitam, “História de Marie e Julien” aparece como o filme que “volta”, torna ao regaço do seu criador, qual fantasma perdido, depois de ter sido projectado há cerca de trinta anos para uma série de quatro filmes do mesmo realizador, intitulada “Cenas da Vida Paralela”, e dos quais só se realizariam os dois primeiros, “Duelle” e “Noroît” (1975-76), sem que “Marie” e “Julien” pudessem na verdade cumprir o seu próprio destino. Como fantasmas de centelha intermitente, estes são personagens que tornam a casa, vagueando entre a vida e a morte, o amor e o desejo, o dia e a noite, num registo simbólico que respeita e eleva a intemporalidade mitológica, como num sonho maior e inesquecível.

Aliás, o sentido do onírico soletra-se desde logo em surdina, lentamente, no “travelling” inicial que nos apresenta, por esta ordem, Julien (Jerzy Radziwilowicz) e Marie (Emmanuelle Béart). E a ordem do aparecimento ou desaparecimento destas figuras – tal como a divisão dos capítulos que tomam a dança dos seus nomes – jamais é arbitrária, antes pelo contrário. De sonho em sonho, sublinhando ainda a experiência do pesadelo, a história dos dois personagens corre o seu curso, como um rio indizível que nos envolve sem remissão nem pecado, guiados pela mestria desarmante de Jacques Rivette. A beleza formal deste filme, a lembrar a grande pintura antiga no seu vestígio sombrio, obriga-nos a considerar o cinema como a arte que funde o “verbo” e a “visão” – entendendo aqui “visão” no seu duplo sentido, entre a faculdade (ocular) de ver e a da sua transcendência espiritual, muito para além do verosímil.

Por outro lado, é a ideia de verdade, na sua manifestação mais profunda, que percorre todas as fases do filme, tomando a vez do (des)encontro, do desejo ou do amor de uma mulher e de um homem que nela vê apenas o regresso de uma outra mulher, ambas afinal já “mortas” na sua vida ou na sua memória, ele que confia mais na audição do que na visão para melhor cumprir, sem qualquer vocação particular, o exercício de relojoeiro – símbolo de Deus, o grande arquitecto do tempo. Desde o primeiro encontro com Marie, Julien elabora sem o saber todo um projecto de ressurreição a dois, entregando-se, finalmente, de novo ao amor. Figura espectral, esquiva e fantasmática, que vive entre a maldição e a imortalidade conferida aos mortos que regressam, Marie será a mulher que irá viver duas vezes, na inevitável alusão ao “Vertigo” (1958) de Hitchcock, para cercar Julien no seu próprio domínio, invadindo a sua vida para cumprir a morte final e derradeira – como se a memória que guardamos dos que morrem os mantivesse de algum modo entre os vivos. Porém, esta mulher que Julien mal conhece mas intuitivamente deseja, esperando que ocupe o lugar deixado pela anterior, não é afinal quem ele julga, revelando-se a descoberta da sua verdadeira identidade uma surpresa atroz e aparentemente amaldiçoada. Dividido sempre pelo conflito entre amor e morte (Eros e Thanatos), “História de Marie e Julien” vai enleando tudo e todos na (in)possibilidade da paixão maior, com destaque para a sensualidade das cenas que convocam uma comunhão entre o amor e o sexo, como ardente e visionária pertença de um em relação ao outro. Estas são afinal personagens de grande espiritualidade mística, que vivem a sua paixão como transgressão da existência, no limite do reconhecimento da fronteira entre a vida e a morte (G. Bataille, M. Blanchot).

Na verdade, o rigoroso trabalho sobre os temas da morte e da ressurreição, bem como do amor que cura e salva, fazem desta “História” uma obra de excepção que convoca ainda o romantismo transcendental de um outro clássico do cinema, “Ordet/A Palavra” (1955), do dinamarquês Carl Dreyer. Também aqui se elevam as almas no grande milagre da ressurreição que só o cinema pode plenamente realizar.

Como obra-prima que é, depois do belíssimo “La Belle Noiseuse/A Bela Impertinente” (1991) ou do pirandelliano “Va Savoir/Sabe-se Lá” (2002), o último filme de Rivette abre-se ao poder do mito, definindo desde já uma aura de inconfessável prestidigitação.

 

“História de Marie e Julien” (França/Itália, 2004) * * * * *

Realização: Jacques Rivette.

Actores principais: Emmanuelle Béart, Jerzy Radziwilowicz

e Anne Brochet

 

(in Vida Ribatejana, 8-12-2004)