Se o enigmático título “Nada a Esconder” vem confirmar uma vez mais a incompetência das autoridades responsáveis pela titulação dos filmes estrangeiros que chegam até nós pelo circuito comercial, ele assume ainda um absurdo particular quando sabemos que o título original, do francês “Caché”, remete desde logo para algo escondido, neste caso, algo bastante escondido e dissimulado pela acção profundíssima do inconsciente do personagem principal: Georges (Daniel Auteuil).
Neste filme, Michael Haneke – autor de outras duas grandes películas, “Funny Games” (1997) e “La Pianiste” (2001) – envolve o espectador de uma forma algo inesperada. Ou seja, confundindo-o na sua tomada de consciência sobre a condição aparentemente necessária de que para qualquer imagem produzida (e reproduzida) tecnologicamente tem de haver alguém, ou um conjunto de pessoas, por trás da câmara que a capta ou reproduz. Em “Nada a Esconder” somos confrontados com uma outra dimensão do real, onde as imagens, mesmo as mais reais, podem ser na verdade apenas fruto do nosso imaginário. Desde o início, Haneke recorre a uma série quase interminável de longos planos fixos – num claro parentesco com as imagens anódinas e hoje cada vez mais comuns das câmaras de vigilância – que nos mostram apenas a frontaria de uma casa e umas quantas pessoas, transeuntes e automóveis que se cruzam nesse mesmo espaço público. Esses planos entram literalmente (e não cinematograficamente), via cassete de vídeo, na casa e na privacidade de um casal da burguesia parisiense, ele Auteuil, ela Juliette Binoche (ambos com interpretações seguras), que partilham um filho e mantêm um elevado nível de vida, buscando afirmação profissional no domínio a televisão e da literatura, respectivamente. Aí podemos ler desde logo uma subtil metáfora sobre a nossa contemporaneidade, a da passagem de uma herança do imaginário, do saber e do conhecimento, a literatura, baseada na palavra, no registo verbal e linguístico, para uma outra dimensão ao nível da percepção do real, baseada sobretudo na massificação da imagem “readymade” (já-feita), produzida e reproduzida até à exaustão pela omnipresença da TV e de tudo o que lhe está associado.
Esta família parece viver uma normalíssima felicidade quotidiana quando essas imagens surgem inadvertidamente como espécie de cobarde intimidação de alguém que os pretende ameaçar, mas que escusa qualquer identificação. Até esta altura, temos um filme com uma trama de suspense onde o policial parece tomar as rédeas da narrativa. Porém, aos poucos, o espectador vai mergulhando numa atmosfera de inóspita e cruel manifestação das forças do inconsciente de Georges. Afinal, o personagem principal deste filme esconde uma história da sua infância aparentemente insignificante, pelo menos para si, mas que se revelará ao longo da história demasiado importante, leia-se insuportável, para outro personagem, um homem de origem magrebina que estivera na sua infância para ser adoptado pelos pais de Georges, mas que vira essa hipótese gorada pela pressão que este fizera junto dos seus pais para que abandonassem a ideia, acusando-o de violência e ameaças que no fundo se misturavam apenas com medos ou receios infantis. Todavia, essa história “escondida” no inconsciente de Georges, mais do que na memória do infeliz personagem franco-magrebino, trará ao último filme de Haneke uma espécie de experiência limite sobre a culpabilização atormentada de Georges, envolvendo ainda o triste e violentíssimo desenlace do seu rival de infância. Mas o maior estremecimento que “Caché” nos propõe – a nós, espectadores de imagens em movimento – é que a omnipresença esmagadora da imagem tecnologizada pode criar um estranho efeito materializador, entre o real e o imaginário, a consciência e o inconsciente, ao ponto tomarmos como ameaça externa, de outro que não nós, os nossos próprios fantasmas do passado, como imagens que gravámos no fundo da alma sem nos apercebermos que, não resolvidas pelo nosso equilíbrio psicológico, tornarão a visitar-nos invariavelmente, só que agora, não apenas por uma espécie de reificação da memória, mas antes pela insólita invasão do medo, gravada na fita de uma cassete por nós enviada à nossa própria morada da felicidade. Afinal, o grande cinema baralha-nos sempre os saberes e os pré-conceitos, o modo como percepcionamos a vida ou o que dela julgamos conhecer.
“Nada a Esconder” (França, Áustria, Alemanha, Itália) ****
Realização: Michael Haneke
Actores principais: Daniel Auteuil, Juliette Binoche, Annie Girardot