2006 Por um novo primitivismo Jorge Vieira

Por um novo primitivismo

 

A arte primitiva é o meu caminho, o que leva às coisas com mais pureza e mais força.

Jorge Vieira

 

Inspirado no primitivismo ibérico ou pré-clássico, de origem mágico-ritual, e ainda na estética surrealista de metamorfose das formas libertadas pelo inconsciente, Jorge Vieira (1922-1998) viria a desenvolver a verdadeira primeira alternativa formal e estilística à geração dos “estatuários” que havia dominado a primeira metade do século XX – ainda que a projecção do seu trabalho só muito mais tarde tivesse beneficiado de uma ampla visibilidade pública. Quer na experiência de uma escultura de estímulo surrealista, quer na assunção consciente da sua manifestação puramente abstracta, a obra de Jorge Vieira representa a mais radical ruptura da escultura portuguesa até meados de novecentos.

Tendo estagiado em meados dos anos 50 em Inglaterra, com Henry Moore, Frederick Edward McWilliam e Reg Butler,[1] Jorge Vieira vai apreender directamente e no tempo certo essas informações essenciais em torno da forma escultórica abstracta, no enleio de correspondências dialécticas entre volumes e espaços vazios. Por outro lado, é também aí que Vieira compreende a metamorfose do corpo humano com o valor da experiência abstracta na sua relação ancestral e mítica. Se Moore procedia nos seus trabalhos de grande escala à abstractização das formas do corpo humano para as inscrever numa dimensão cósmica de partilha existencial, Jorge Vieira irá reduzir essa mesma apetência de múltipla fusão formal a uma escala anti-monumental, adoptando a terracota como matéria eleita para o exercício das formas.

Todavia, já em 1947-48 Jorge Vieira produz peças de teor abstracto-surrealista, tendo como referência uma espécie de essencialismo primitivista, sublinhando ainda o sentido ancestral da sua substância e enraizamento. Invertendo aí a dimensão religiosa original, Vieira promove uma revalorização das potencialidades formais da escultura pré-clássica, vendo nela o pretexto para o jogo livre da associação formal, pontuando assim uma atenção personalizada dessa sugestão de liberdade criativa, ou “beleza convulsiva”, anunciada pelos surrealistas. Nunca tendo abraçado a versão doutrinária da estética coordenada por André Breton, nem integrado verdadeiramente nenhum dos seus grupos lisboetas, Jorge Vieira inscreve todavia na interpretação das formas míticas a primeira referência ao Surrealismo da escultura portuguesa.

Depois de em 1948 ter visitado o Museu do Homem, em Paris – importante espaço de revelação das sociedades ditas, à época, “primitivas” – Jorge Vieira acumula referências de ordem ancestral, despertando aí o seu desejo de “restabelecer o valor mágico da escultura.”[2] Por isso, as suas primeiras séries de objectos, de pequena escala, traduzem uma espécie de união entre uma essencialidade de raiz mediterrânica e a inversão desse sentido da proporção e “da justa medida” que predominava na cultura estética do Estado Novo.

Nesses primeiros trabalhos, datados de 1948 e 49, perscruta-se um jogo erótico e modelar em torno da descoberta orgânica de espaços cheios e vazios, em alisamentos que se revelam auto-referenciais, autónomos e por isso abstractos. Não há aqui qualquer valor de escala, ou figuração celebrativa, antes a libertação formal de um valor simbólico da substância que o barro ou a terracota – enquanto matérias da terra por excelência – ajudam a confirmar.

Por outro lado, a escultura de Jorge Vieira abandona conscientemente não só o carácter mimético da herança escultórica nacional como as suas técnicas mais comuns, ao introduzir outros valores estéticos e de composição com origem na arte popular ou na surpresa libertária do inconsciente: daí o formalismo enigmático e sensual dessas peças curvilíneas, a expressão de novos equilíbrios estabelecidos a partir da dialéctica côncavo/convexo, ou a prolífica aplicação dos “engobes, técnica primitiva, originária da cerâmica, que consiste em pintar a cor sobre o barro em determinado momento da sua secagem e seguidamente levá-lo ao forno a cozer.”[3] É como se Jorge Vieira pretendesse criar uma nova linguagem formal, determinada pelo prazer de uma ductilidade expressa na delicadeza dos equilíbrios, das imbricações da matéria, das associações inesperadas, inviabilizando uma leitura lógico-racional para o significado da sua escultura. A síntese orgânica destes trabalhos reduz o referente figurativo a uma espécie de longínqua memória do sentido e das certezas do Homem. Também por aí, Vieira caminhava no sentido inverso da escultura nacional. Para ele a anatomia dos corpos só podia interagir na fusão biomórfica com outras expressões da natureza animal, como nessa exuberante e revolucionária articulação dos volumes corporais que significa o conjunto Homem e Mullher (1952), essencializado em valores de abstractização sígnica e geometrizante de grande sentido lúdico sobre a gravidade e a pose. A dimensão metamórfica desta escultura, na elaboração de um estranho bestiário, irá permanecer constante ao longo do seu desenvolvimento e até final.

Mesmo quando, em meados 50, Jorge Vieira apreende o valor absoluto da escultura abstracta com Moore, Butler ou, mais tarde, com Lynn Chadwick, é na confluência com o orgânico e a manifestação de bizarros seres mitológicos, entre o real e o onírico, que esse programa estético será sempre interpretado.

É precisamente em 1952 que se realiza em Londres o concurso para o “Monumento ao Prisioneiro Político Desconhecido” organizado pelo Institute of Contemporary Arte de Londres. A esse concurso – que tinha no júri historiadores e críticos de arte como Herbert Read, Giulio Carlo Argan ou Alfred Barr Jr. – o escultor português envia uma maqueta em bronze, produzida no final desse ano que “rasura qualquer vestígio figurativo e é dentro de uma certa ascese de elementos, materiais e formas que se ergue”, implicando “na sua orgânica formal o político.”[4] Na verdade, com essa obra-prima da escultura portuguesa, Jorge Vieira provava que era possível evocar uma forte leitura política na elevação das formas puramente abstractas. O sentido dessa peça surge assim no encadeamento ascensional das formas oblongas que se multiplicam sobre um tripé de estrutura agressiva, cravado no chão. Deste modo, a união que resulta da circularidade obtida a partir de uma vincada interdependência das formas reforça afinal uma interpretação em torno dos valores de solidariedade humana.

Com o primeiro prémio a ser atribuído a um trabalho de Reg Butler, Jorge Vieira viria a alcançar com essa maqueta um honroso “prémio de concurso”, transformando-o desde logo numa promessa da escultural internacional. Na verdade, esse era o momento em que o escultor português procurava adaptar ao seu jargão formal de origem surrealizante novos sistemas de composição predominantemente abstractos, e materiais até aí por si pouco utilizados como a pedra, o bronze e o ferro. São também dessa época, e a partir de uma estadia na Slade School of Fine Arts de Londres, em 1954, as primeiras peças de assunção definitiva de uma verticalidade angulosa que viria a caracterizar o seu trabalho até ao final dos anos 50. Aliás, ao desejo de partir para Londres não deverá ter sido alheia a fraca recepção da crítica e do público que teve, ainda em 1954, o I Salão de Arte Abstracta, organizado por José-Augusto França na Galeria de Março, em Lisboa.

Regressado ao nosso país, Jorge Vieira continuaria a desenvolver o seu bestiário de formas escultóricas, num laborioso projecto de criatividade onde o erotismo estará sempre presente, bem como sugestões formais de inspiração surrealista. No fundo, após as experiências de uma pura escultura abstracta, Vieira tornará aos seus valores mitológicos e ancestrais como universo primordial de formulação crítica e sensível. À recriação dos corpos no seu complexo processo de significação, o escultor não deixará nunca de propor um sentido experimental do onírico, em estruturas volumétricas de onde dirige magníficas hibridações que ora recuperam valores figurativos primitivistas e mitológicos (de identificação sexual combinatória) ora postulam nitidamente a sua rarefação sígnica. Foi essa a sua estratégia criativa e de imaginação, o seu contributo absolutamente único para escultura portuguesa, que assim pôde finalmente acreditar noutros valores estéticos para além da “estatuária oficial”.

 

[versão original, in Arq.a – Revista de Arquitectura e Arte, nº 36, Março/Abril, 2006]

 

 

References
1 Cf. Pedro Lapa, “O imemorial e o corpo na escultura de Jorge Vieira”, in catálogo Jorge Vieira. Museu do Chiado, SEC-IPM, 1995, p. 24.
2 María Jesús Ávila, “Surrealismo nas Artes Plásticas em Portugal, 1934-1952”, in María Jesús Ávila e Perfecto E. Cuadrado, Surrealismo em Portugal, 1934-1952, Lisboa, Museu do Chiado/Museo Extremeño e Iberoamericano de Arte Contemporáneo, 2001, p. 93.
3 Pedro Lapa, op. cit., p. 19.
4 Ibidem, p. 21.