É preciso criar a pátria portuguesa do século XX.
Almada Negreiros, 1917.
À entrada de 1900, as artes plásticas em Portugal sofriam o estigma prolongado, e mais do que aceite, de um naturalismo ar-livrista, rapidamente tornado tradição de bem fazer em arte. A sociedade aristocrata e burguesa aí prolongava o seu gosto comedido, deliberadamente afastado de qualquer orientação moderna, tendo no paisagismo oitocentista de Silva Porto (1850-1893) e Marques de Oliveira (1853-1927), ou ainda nas cenas de costumes populares de José Malhoa (1855-1933) um reconhecimento identitário quase absoluto, assegurado pelos circunstancialismos políticos e sociais da transição entre o regime monárquico e a primeira república. Por outro lado, ainda na pintura interiorista de Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929) se revia uma elite bem pensante, que melhor cabia no escuro cromatismo, só suave e brilhantemente iluminado, que caracterizava esses retratos mundanos, em cenas de interior de qualidade isolada, mas igualmente alheia à sua contemporaneidade internacional.
De entre os artistas que viriam a comandar institucionalmente a primeira metade do século XX – pois quase todos eles tomaram para si cargos oficiais e académicos, com destaque para a direcção do triste e isolado Museu Nacional de Arte Contemporânea, criado em 1911 – foi António Carneiro (1872-1930) quem procurou contrariar essa estética naturalista, optando antes pela pessoalizada afirmação de uma pintura onde os valores simbolistas acrescentavam uma intencional conceptualidade literária, tomando por modelo essencial o simbolismo francês protagonizado por Puvis de Chavannes. O deliberado sentido metafórico do tríptico A Vida (1901), significa deste modo uma notável vontade de autonomia estética e modernidade relativamente aos valores dominantes desse «ar-livrismo» conservador e mais condizente com a sensibilidade e o gosto nacionais. António Carneiro pontuava então um desejo alegórico, sintetizado na própria estruturação da obra, tripartida, e concedendo-lhe logo aí um valor mítico e religioso que simultaneamente valorizava as três fases da vida humana, simbolizadas no subtítulo Esperança, Amor, Saudade. Também os tempos históricos adoptados nessa obra (por ordem: clássico, medieval e contemporâneo) remetem para uma súbita necessidade de compreensão sobre os valores de uma sólida cultura literária, que a grande maioria dos nossos artistas não possuía efectivamente. Sublinhada pelo raro exemplo de António Carneiro, a intelectualização do ofício de pintor seria assim, uma vez mais, tarefa indefinidamente adiada, apesar de algumas avisadas críticas como as Eça de Queirós e Ramalho Ortigão no final de Oitocentos, e sobretudo Fernando Pessoa no início da aventura moderna do século XX.
Fragmentárias rupturas: do raro desejo de vanguarda ao regresso à ordem
Determinados, por certo, pela hegemónica presença do naturalismo no início do século XX, os primeiros sintomas de ruptura moderna dar-se-ão a medo. Primeiro, logo em 1911, na sobrestimada «Exposição dos Livres», panfletariamente liderada por Manuel Bentes (1885-1961), e de modo mais inteligente defendida por Christiano Cruz, que afinal moderna se assumia apenas pelo seu carácter anti-académico, e sobretudo evidenciava uma reduzida ousadia no plano formal e estilístico. Depois, entre os caricaturistas e ilustradores que se apresentaram nos «Salões dos Humoristas Portugueses», pelos anos de 1912 a 1926, entre Lisboa e o Porto. A via do humor abria as portas a uma modernidade estilisticamente apreendida em Paris nos salões congéneres, ou na profícua ilustração da imprensa francesa, onde a simplificação da composição em traço livre e contrastes de cores claras, salientava uma nova interpretação da imagem, abandonando os efeitos de claro-escuro ou o pendor narrativo que havia caracterizado o século anterior. De entre os nomes normalmente associados ao desenho humorista, destacam-se as figuras de Christiano Cruz (1892-1951), Emmérico Nunes (1888-1968), Jorge Barradas (1894-1971) e António Soares (1894-1978), pelo modo como souberam confirmar um modernismo elegantemente estilizado, a partir de uma prática que alcançava assim essa maior liberdade criativa pouco ou nada aceite em pintura. Desses, Christiano Cruz assumia um particular domínio, por via intuitiva, sobre a simplificação formal que então se desenvolvia em toda a Europa. Alinhando nesses anos por uma atitude contra-corrente e anti-académica, favorecido só em parte pela queda da monarquia e a instauração do regime republicano, Christiano Cruz deve ser ainda valorizado pela extraordinária qualidade dos seus cartões realizados sob a influência, por antecipação ou experiência directa, da I Guerra Mundial. O prazer estilístico de um certo decorativismo presente em obras anteriores, como O Rei Tenista (Afonso XIII de Espanha) (1913), ou Auto-Retrato (1916), dá lugar a uma progressiva síntese geometrizante, patente em Soldado Morto (1915) e, sobretudo, em Cena de Guerra (1916-18), que não deixa contudo de o aproximar também de algum expressionismo do centro da Europa. Mas o que aí se revela formalmente é quase sempre definido por uma visualidade intuída e pouco determinada por qualquer tipo de aculturação exterior, confirmando a pouca apetência dos artistas portugueses para qualquer colagem mais entusiasta às vanguardas artísticas dos primeiros vinte anos deste século. Após o final da Guerra, Christiano Cruz viria então, subitamente, a abdicar da sua carreira artística a favor de um isolamento a que a opção pela vida de médico em África não será alheia.
Ao carácter fragmentário das iniciativas de modernos e humoristas, que pelos salões da SNBA se afirmavam, juntar-se-ia de modo mais radical a fugaz mas destemida ofensiva do Futurismo em Portugal. Assumida essencialmente na acção provocatória de Guilherme Santa-Rita (1889-1918) e Almada Negreiros (1893-1970), a estética futurista teve entre nós uma vida curta, sustentada mais nos gritos de revolta dos seus mentores, do que na consolidação de uma solidez esteticamente apreciável. Movimento sem obra, a afirmação dessa vanguarda trazida de Paris por Santa-Rita, na influência de Marinetti e de uma exposição que os futuristas italianos aí realizaram, em 1912, fez-se primeiramente na indefinição modernista da revista Orpheu (1915) e, depois, na declarativa apresentação do número único e não distribuído de Portugal Futurista (1917). Pela primeira vez, o fulgor dandy confluía num regime comportamental que trazia até nós alguma da alucinação ética que caracterizava as vanguardas artísticas socialmente empenhadas, entre os opostos ideológicos de futurismo e dadaísmo internacionais. Santa-Rita Pintor, tal como se fazia apresentar, assegurava quase sempre uma presença escandalosa, ajudada por indumentárias de provocação niilista, radicalizando-se ainda em reivindicações afrontosas de carácter afirmativo: “Futurista declarado em Portugal há um, que sou eu.”[1] Da sua rara produção sabemos apenas de algumas colagens (publicadas precisamente em Orpheu e Portugal Futurista) e histórias de outros tantos óleos já desaparecidos, por estranha e pouco esclarecida atitude. Presumivelmente, pouco antes da sua morte, Santa-Rita ordenara à família que destruísse toda a obra por ele realizada, abdicando assim de uma posteridade, entre a vontade romântica e a iconoclastia vanguardista. Versão correcta ou por confirmar, o certo é que a sua produção artística mantém-se envolvida numa aura lendária não esclarecida. De alguma forma enigmática continua a ser também a atribuição a Guilherme Santa-Rita de uma Cabeça (1910), não assinada, de linha estética dinamizada em particular cubo-futurismo. Obra de qualidade, mantém-se, contudo, nas palavras de Raquel Henriques da Silva, como “obra mítica da produção inexistente do pintor e do modernismo português.”[2] De Almada Negreiros ficaram-nos os manifestos, esses enérgicos e teatralizados Ultimatos com que a sociedade conservadora lisboeta se via confrontada. Desde o Manifesto Anti-Dantas (1915) ao Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, lido com fervor em Abril de 1917, Almada realizou o mais vasto e fulminante ataque ao academismo artístico protagonizado pela elite social. Nesses textos de intervenção, assumiu a denúncia do atraso de Portugal relativamente a uma Europa que nessa época energicamente se digladiava. Acusou tudo e todos, nesse extremismo vanguardista, fazendo tábua rasa do passado e procurando num pretenso novo cosmopolitismo a afirmação da “raça portuguesa”. “É preciso criar a pátria portuguesa do século XX”, gritava Almada Negreiros. A defesa de um acérrimo nacionalismo mais interventivo e modernista fazia a ponte política com a ética higienista e eufórica herdada da mensagem futurista de Marinetti. Contudo, só depois do fim da Grande Guerra, Almada Negreiros pôde frequentar essa Paris que lhe servia de modelo e inspiração, quando aí o “regresso à ordem” era já a palavra chave para um abrandamento sobre as ousadias de grupo, em vésperas da erupção surrealista. No regresso dessa estadia, Almada reconsideraria o ímpeto futurista, vislumbrando na análise do passado artístico português uma necessidade refundacional, optando então por uma laboriosa mas pouco vanguardista prática do desenho (que tem sido demasiado valorizada pela historiografia nacional), como em A Leitura (1939), culminado esse labor conciliatório nos frescos realizados nos anos 40 para as Gares Marítimas de Alcântara (1943-45) e da Rocha Conde de Óbidos (1947-49). De qualquer modo, para lá dos múltiplos talentos reconhecidos de homem moderno na cultura portuguesa, e se outros méritos não tivesse, dever-se-ia sublinhar a função pioneiríssima de Almada Negreiros, quando entusiasticamente anunciou aos portugueses a figura de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), em manifesto desde logo intitulado, A Primeira Descoberta de Portugal na Europa do Século XX (1916),[3] nisso acertando o tempo e a palavra sobre a profícua produção pictórica de um verdadeiro nómada das vanguardas parisienses. Em Paris desde 1906, Amadeo cedo aproveitou, adiantando-se mesmo em certos casos, não só os ousados desenvolvimentos formais dos cubistas Picasso, Braque ou Gris, como a amizade e a troca de influências com Modigliani, ou as radicais experiências a caminho da abstracção protagonizadas por Kupka, Picabia ou Delaunay, nessa “pintura pura” identificada por Apollinaire e livremente praticada pelo artista português. Amadeo foi o único ainda dos bolseiros portugueses que pôde abdicar mais declaradamente, por razões de apoio familiar, das serôdias directrizes académicas. Cedo percebeu do dinamismo cosmopolita do novo século, recusando liminarmente o saudosismo lusitano que via à sua volta, desabafando aquando do convite para participar na «Exposição Livre» de 1911: “Estou em absoluto desacordo com os meus amigos compatriotas que marcham numa rotina atrasada… Tudo o que para aqui se faz é medíocre aparte raras coisas.”[4] De facto, só a cidade de Paris podia satisfazer a sua ânsia de novidade e vida moderna, só a velocidade insatisfeita desse grande centro urbano poderia vir a orientar a sua estética e pintura. Logo em 1912, com a publicação do álbum XX Dessins, Amadeo recebera rasgados elogios da crítica francesa (incluindo de Appolinaire), aí evidenciando antecipadamente um gosto ecléctico e moderno informado ao mesmo tempo pelo decorativismo e bidimensionalidade orientalistas – sobretudo na exploração de ritmos curvilíneos, ou na minúcia e proliferação de padrões que ocupam todo o espaço do desenho – por valores plásticos primitivistas – nas figuras sintetizadas formalmente em cenas mágicas e misteriosas, que remetem ainda para uma atenção à estética do cubismo – pelo alongamento da figura humana sugerida no contacto com Modigliani, e ainda pela suave presença de alguns arquétipos da cultura portuguesa. Em Amadeo, esse ziguezagueante eclectismo jamais se incompatibilizou com o carácter experimentalista da sua pintura, e 1913 seria um ano em que a urgência de soluções formais forneceria desde logo a imagem fragmentária das suas investigações, dinamizadas ao ritmo do novo século, em passagens fugazes mais significativas não só pelos Salões dos Independentes, em Paris, como por exposições em Berlim, na galeria “Der Sturm”, ou Nova Iorque, em 1913, aquando do “Armory Show”, nessa famosíssima embaixada nos EUA da moderna pintura europeia. De facto, entre Cozinha de Manhufe e Les Cavaliers, ambos de 1913, Amadeo passa rapidamente da análise espacial do quadro, sugerida ainda no primeiro caso pela imagem de uma arquitectura, para a exploração cada vez mais assumida das formas puras, a partir de um muito pessoalizado cromatismo, mais sensual e ritmado, que aponta para uma longa sequência de pinturas, de 1913 a 1914, que oscilam entre a abstracção pura, de carácter “órfico”, e a antecipação linear e hierática da estética “purista”. Curioso será verificar, a partir de meados de 1914, uma nítida aproximação aos valores expressionistas da pintura do norte da Europa. Amadeo opera então a necessidade de voltar ao domínio figurativo, em figuras humanas, e sobretudo máscaras, que confluem sugestões cubistas com algum subjectivismo da pintura expressionista, como na série de três Cabeça(s) (1914-15) ou em Tristezas, Cabeça (1915). O regresso a Portugal, em virtude da I Guerra Mundial, leva-o a Barcelona, depois Madrid e, por fim, Amarante, aí se fixando em isolamento crescente, longe dos ritmos modernos de Paris, só interrompido por uma profícua troca de correspondência com o casal Robert e Sónia Delaunay. Amadeo convence-os então a viajar para o nosso país, até Vila do Conde, onde fomentarão, em conjunto com Eduardo Viana e Almada Negreiros, uma troca de influências que terá resultado em obras que misturam uma iconografia popular minhota e os “discos solares” de Robert Delaunay. Nas pintura entre 1916 e 1917, antes da morte prematura em 1918, vitimado pela “pneumónica”, Amadeo desenvolveria um dos momentos mais originais da sua obra e de toda a arte portuguesa do século XX, ao proceder a constantes análises formais-construtivas, que denunciam uma antecipação relativamente a algumas experiências dadaístas, não esquecendo esse frenético ritmo futurista em organizações de forma que seguem, no essencial, particulares interpretações do cubismo sintético, entre a colagem e um colorismo puro deliberadamente fragmentado, como em Trou de la Serrure- Parto da Viola Bon Ménage – Fraise Avant Garde de 1916, e Pintura- Coty, de 1917.
No período final da sua vida, Amadeo viu o seu trabalho envolvido em polémica e escândalo, quando em entrevista a um jornal da direita monárquica, e a propósito da reacção pública às suas exposições individuais no Porto e em Lisboa nos últimos meses de 1916, afirmará com ironia e sentido de provocação modernista em relação ao público português que o recusara: “Nós, os novos, declaramos que é necessário desprezar todas as formas de imitação e glorificar todas as formas de originalidade; que é preciso revoltar-se contra as tiranias das palavras harmonia e bom gosto (…) que é preciso varrer de uma vez para sempre todos os assuntos gastos, a fim de expressão intensa à nossa turbilhonante vida de aço, de orgulho, de febre e de velocidade, que devemos considerar como um título de orgulho o cognome de loucos com o qual a mediocridade se esforça para demolir os inovadores.”[5]
Apesar destas afirmações de teor moderno, Amadeo Souza-Cardoso representou, no entanto, durante largas décadas, uma espécie de fantasmática figura a que, mais tarde, o regime salazarista procurou adiar um efectivo (re)conhecimento – não fosse influenciar, sobretudo depois de morto, qualquer impulso modernista mais radical, que não coubesse no cordão de “harmonia” dessa “política do espírito” definida em 1933 por António Ferro, na acção moderadora do SPN (Secretariado de Propaganda Nacional). Aliás, António Ferro – que depois de uma juventude defensora de Orpheu, limitara toda uma possível acção vanguardista aos ditames de um equilíbrio aniquilador, temperado pelas orientações de Estado – viria ainda a assumir a linha de participação de Portugal nas várias exposições internacionais da década de 30 (de Paris a Nova Iorque), culminando o seu desiderato na «Exposição do Mundo Português» de 1940, em Lisboa, nessa “grande realização” do conjunto das comemorações do duplo centenário da independência nacional (1140-1640). Data de todas as celebrações, comemorava-se aí o apogeu e consolidação de um regime político responsável, para lá das razões sociais e políticas de maior importância, pela tarefa de assimilar e suavizar as pretensões modernistas dos poucos que ousaram lembrar os desígnios internacionalistas de algumas vanguardas.
A matriz expressionista dos anos 30
Entre os finais dos anos 10 e da década 20, e de uma linha apaziguadora, como espécie de “regresso à ordem” (como se desordem tivesse de facto existido…), dever-se-ão lembrar as obras de Eduardo Viana (1881-1967), tímido modernista, conviva do casal Delaunay e de Amadeo, que da “pintura órfica” apenas pode absorver reduzida intenção desses “discos” de cores puras, adaptando-os em contenção figurativa à sua paleta mais cezanneana, destacando-se, do conjunto da sua obra, A Pousada dos Ciganos, de 1923-25, pela feliz distorção perspéctica apresentada, ou ainda os dois Nu(s) de 1925, realizados para a Brasileira do Chiado e o Bristol Club, onde se procede a «cezanneano» entendimento sobre a exuberante carnalidade do corpo feminino. Do período directamente influenciado pelo convívio com os Delaunay, como em A Revolta: a Revolta das bonecas (1916), Viana havia perdido a aproximação aos valores do formalismo abstracto e cromático que apreendera na pintura do casal francês. Não eram essas as razões do seu trabalho. Para Eduardo Viana, a dimensão construtiva de Paul Cézanne ou de Robert Delaunay tinha de se entender dentro de um quadro de harmonia prazenteira onde o cromatismo denunciasse uma espessura sensual, quase matérica, marcada pela vibração figurativa das formas. De outro modo, Dordio Gomes (1890-1976) como no exemplo místico e animalista de Éguas de Manada (1929), Abel Manta (1888-1982) com Jogo de Damas (1927), ou ainda Milly Possoz (1888-1967) em Paris-Quai Voltaire; Paris antigo (c. 1930-37) prolongaram apenas uma modernidade pictórica levemente inspirada na lição espacial de Cézanne, e de orientação conciliadora ainda com os valores dominantes do naturalismo oitocentista.
Já nos anos 30, deparamos com uma necessidade de registo pictórico onde o individualismo estilístico mais marginal se informa por alguma orientação expressionista, alimentada também, por certo, no humanismo da “folha de arte e crítica” da revista Presença (1927-1940). A mais ideossincrática e valiosa obra destes anos é a do pintor Mário Eloy (1900-1951), que representa uma absoluta busca de si próprio, no seu tormentoso equivalente estético, em auto-retratos e encenações dramáticamente líricas, dinamizadas em pessoalíssima organização cromático-formal, onde a espessura matérica da pintura se reflecte em particular iluminação dos volúmes, sempre modernamente entendidos, de Picasso ao desencanto expressionista. Por exemplo, o tonalismo nostálgico das figuras, tanto em Bailarico no Bairro (1936) como sobretudo em O Poeta e o anjo (1938) e Da Minha Janela (1938), remete para uma forte densidade psicológica das figuras imaginadas, como forma mais delirante de alcançar uma realidade intangível, entre a presença da morte e uma forte e desesperada paixão interior.
Por outro lado, Dominguez Alvarez (1906-1942), pintor que à semelhança de Eloy também se auto-marginalizou, apresenta uma atmosfera visual muito particular, entre paisagens expressionisticamente isoladas, nesses negros céus de inverno, como em Bairro de Pescadores (Cat. nº 22) de casario e janelas abandonadas, e os auto-retratos deformados por uma emoção certamente mais contida e asfixiante.
De outro modo, Júlio (1902-1983) recorre a um lirismo dependente, em parte, do formalismo pós-cubista e da figuração de um Marc Chagall, encenando vários momentos narrativos no mesmo plano do quadro. Entre um imaginário infantil sem alegria e a organização formal orientada por um forte contraste de cores, Júlio equilibra uma pintura feita de sugestões expressivas e alguma desilusão social, sobretudo em obras como Espera (1930), O Circo (1931), e O Burguês e a Menina (1931).
De entre outros pintores afirmados nos anos 30, do desenho publicado em periódicos à pintura de cavalete, refira-se ainda o trabalho de Carlos Botelho (1899-1982) e a sua célebre página de sátira social, intitulada Ecos da Semana e regularmente publicada no Sempre Fixe (1928-1950). Botelho pontua aí um desenho que não esquece uma certa herança modernista mais desenvolta, em contraste com a sensibilidade timidamente expressionista das suas vistas de Lisboa, em muitas telas reinventadas maioritariamente pela persistência poética do seu olhar.
Também ligado aos anos 30 está o desenhador humorista Bernardo Marques (1899-1962). A melhor fase da sua obra, entre a apresentação das elites lisboetas e aos estereótipos formais da sua apresentação social, no início da década de 20, e os desenhos inspirados numa estadia em Berlim (1929-30) – que seguem de perto a estética pós-expressionista da “Nova Objectividade”, promovida na Alemanha pelo desenho veemente de um George Grosz, ou de um Otto Dix – o que se revela é afinal uma tendência para a conciliação entre o sarcasmo mais explícito e uma elegante ironização sobre a superficialidade e mundanismo da vida cosmopolita.
Dois casos parisienses: Vieira da Silva e António Pedro
À margem da realidade artística portuguesa, o nome de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) tem sido historicamente enquadrado na Escola de Paris dos anos 30 e 40. Nessa época, na caiptal francesa, reinterpretavam-se ainda as pesquisa formais pós-cubistas, ou o regresso a uma modernizada figuração, associando também cada vez mais a conquista da abstracção pictórica com a longa tradição pós-impressionista de um Cézanne ou da fase final da obra de Monet. O lirismo abstracto de raiz impressionista que caracteriza a Escola de Paris nesta fase, individualiza-se assim na obra da pintora portuguesa pela relação que esta mantém com a memória da sua infância, sugerida nas paisagens de Lisboa, nos azulejos, nas colinas, nas encruzilhadas das ruelas, ou nessa geometria clara que se transforma em sinais coloridos, nas linhas que adquirem uma nova função espacial e nos revelam perspectivas surpreendentes. As paisagens de cidades, ou de espaços interiores, são assim uma constante temática na obra de Vieira da Silva. As marcas dessa paisagem convertem-se estruturalmente num labirinto de arquitecturas, em particular “rede de sinais” que povoam o espaço pictórico e envolvem o observador numa pluralidade de planos. É uma pintura que vai construindo o seu próprio sistema linguístico e simbólico, em persistente obstinação mantida ao longo de toda a carreira da pintora.
No contexto da pintura abstracta, Vieira promove uma sólida revalorização da estrutura da imagem pictórica, ao criar uma nova da imagística da linha e da perspectiva, seduzida pelas marcas físicas do mundo, e pela acção humana na sua edificação, realizando desse modo uma singular objectivação da imagem e da memória. O lirismo abstracto desse processo confronta-se, muitas vezes em paradoxal harmonia, com a proposta figurativa, num registo, ainda que pouco perceptivo, dos objectos, dos sinais do real. Da mesma forma, os valores da luz exterior e natural são reordenados através da disciplina e geometria cubistas. Esta reinterpretação iniciada em Delaunay tem na pintora portuguesa a particularidade de uma progressiva abstracção do referente, sobretudo apoiada na presença da linha como signo, tornada assim nova caligrafia. Na realidade, os valores suavemente impressionistas da pintura parisiense de entre as duas guerras haviam possibilitado a Vieira da Silva a formulação de uma pintura cada vez mais etérea, fixada na busca de uma paisagem imaginada e labiríntica, mantida entre a memória visual e uma nova “cenografia dos espaços”.
Também nos anos 30, um outro português apresenta um percurso original e ainda por reavaliar. Como pioneiro inquestionável de uma surrealidade na prática do desenho livre, ou ainda enquanto divulgador das vanguardas que Paris podia oferecer nas décadas de 30 e 40, António Pedro (1909-1966) procurou sistematicamente uma espécie de confluência criativa e disciplinar que teve por base uma atitude experimental entre a poesia e a pintura moderna, sublinhando desde cedo o jogo de percepções estabelecido entre combinatórias verbais e a sua diluição semiológica, na recusa da poesia como técnica invariavelmente sujeita a um quadro de géneros literários. O seu trabalho poético e visual procurava um cruzamento disciplinar capaz de reactivar e reinventar os sentidos, através de desconstruções fonéticas e visuais. Interessava-lhe sobretudo alcançar , como ele próprio defendia, “uma ritual exaltação sensível”. Ao estabelecer-se em Paris, entre 1934 e 1935, António Pedro viria a desenvolver e confirmar estas teorias, convivendo e assinando, com muitos outros artistas (de Calder a Duchamp), o menos conhecido mas não menos parisiense «Manifesto Dimensionista» (1935). Centralizada na procura de uma espécie de valor espacial da expressão poética, a teoria dimensionista significaria uma atitude revolucionária de vida curta. Proclamava-se essencialmente uma união espaço-tempo, reinterpretada à luz das teorias de Bergson e Einstein, e que introduzia uma interessante desarticulação de fronteiras entre disciplinas e géneros, mesmo que pretensamente envolvida por uma pouco clara “ordem cósmica” dessa nova “quarta dimensão”. Contudo, não foi a ideia de absoluto que moveu António Pedro nesta aproximação ao Dimensionismo, mas antes uma particular interpretação organizada em torno do conceito de devir. É disso exemplo o magnífico Aparelho Metafísico de Meditação (1935), esse objecto tautológico revelado em absoluta poética vanguardista. Por outro lado, não podemos esquecer que para António Pedro a arte é, sobretudo, do domínio do sensível e não do inteligível. Por isso, a sua aproximação formal à abstracção – como em Abstractions Géometriques (1935) – poema constituído por quatro abstracções geométricas, concebidas como versos intercambiáveis – nada tem que ver com o imanentismo essencialista de Kandinsky ou Mondrian, nem tão pouco com o utopismo abstraccionista do construtivismo russo. A partir de um universo mais poético e livre, António Pedro definiu uma criatividade lógico-sensível que ora se revelava em visualizações isomórficas do signo, ora se reorientaria depois na emergência de uma imagética alimentada pelo inconsciente, nesse surrealismo que viria a revelar a face mais mediatizada do artista. Em termos de um prática pictórica surrealista – manifestada logo em 1940, numa exposição realizada a par de António Dacosta (1914-1990) e Pamela Boden, António Pedro não chega a alcançar os resultados da sua fase dimensionista, embora tenha funcionado como figura tutelar para uma série de jovens artistas que viam na ordem bretoniana do segundo pós-guerra uma renovada orientação vanguardista, confirmando a esperança do final dos anos 40 em torno de uma prática artística que definitivamente estabelecesse uma ordem de sintonia com o modernismo internacional.
Sobre a crítica e o comentário da arte em Portugal
Ao invés da promessa crítica anunciada pelo fervor de Antero de Quental nas famosas Conferências do Casino da Geração de 70, Portugal entrou no século XX sem ambições artísticas e muito menos críticas. O naturalismo paisagista prolongava-se então no concílio entre a aristocracia e uma burguesia que, afinal, lhe queria seguir o estatuto e os privilégios. Como já vimos, também a prática artística transitava entre a monarquia e o regime republicano sem sobressaltos de maior. Longe de qualquer cosmopolitismo, Lisboa e Porto reflectiam um isolamento eminentemente provinciano espelhado no ritmo reduzidíssimo e quase arbitrário da crítica de arte publicada em periódicos nacionais. Do final do século XIX chegavam-nos, é certo, algumas vozes mais críticas e inteligentes como as de Ramalho Ortigão ou Fialho de Almeida, empregues todavia no comentário à sociedade portuguesa em geral e só muito raramente empenhadas no desenvolvimento autónomo da crítica de arte.
Se exceptuarmos algumas incursões de Fernando Pessoa pela crítica de arte – como no famoso artigo As Caricaturas de Almada Negreiros, publicado n’A Águia em 1913, em que enigmaticamente se afirmava: “o génio de Almada Negreiros manifesta-se em não se manifestar” – raras foram as personalidades de destaque da cultura portuguesa que ousaram proferir comentários sobre as artes plásticas, até porque estas nunca alcançariam entre nós a dignidade e o estatuto intelectual da Literatura. Em 1916, o próprio Almada Negreiros, com o Manifesto da exposição de Amadeo de Souza-Cardoso, gritava em reduzido eco social essa “primeira descoberta de Portugal na Europa do século XX”. Apesar da proclamação, poucos foram os que aí detectaram a fronda de ruptura que caracterizava esta curta ofensiva modernista. A crítica jornalística oscilava então entre o carácter pseudo judicativo e o louvor, ou a polémica estéril e inconsequente, sem progresso nem influência directa na já de si isolada produção artística. Se as revistas dos anos 20, como a Contemporânea, a ABC ou a Ilustração Portuguesa deram trabalho de ilustração a muitos dos primeiros modernistas portugueses, não souberam contudo desenvolver qualquer esforço em torno da crítica e da reflexão sobra a arte moderna. Reduzida às decorações de A Brasileira do Chiado ou do Bristol Club, o próprio modernismo teria, de facto, reduzida influência e visibilidade, logo abafada nos anos 30 e 40 pelos valores conciliatórios e mais modestos da “Política do Espírito” de António Ferro e de toda a acção do SPN.
Entre o final dos anos 20 e os anos 40 houveram no entanto dois periódicos que introduziram uma mais sistemática interpretação sobre a arte, a sua essência ou função social. De facto, ao cariz intuitivo e ao individualismo levemente moderno da Presença, liderado pelas figuras de João Gaspar Simões, José Régio, Adolfo Casais Monteiro, ou Diogo de Macedo (no que diz respeito às artes visuais) responderia a Seara Nova com o racionalismo clássico comandado por António Sérgio. As discussões teóricas aí publicadas resultavam contudo em torno de uma definição filosófica sobre a essência da arte, tendo a maioria das vezes como pretexto a poesia ou a literatura. Será precisamente no confronto com a Presença que irá germinar a formação do ideário neo-realista literário, influente já na década de 40 no domínio das artes plásticas. Os ataques à “arte pela arte” e os debates entre “autonomia” versus “função social da arte” reflectiam uma preocupação maioritariamente envolvida com o meio académico e literário, que só de forma esporádica se disseminava pelo meio artístico nacional.
De um modo geral, podemos afirmar que tanto as artes plásticas como o seu comentário crítico tiveram, de facto, uma fortuna de desenvolvimento a maioria das vezes circunscrita a um isolamento político e social que apenas confirmava o carácter periférico da nossa condição cultural. Entre adiamentos e persistências, a primeira metade do século artístico português abraçou o modernismo com as reticências naturais de uma cultura visual em tudo tendente ao rigor verista do naturalismo pictórico. Foi um modernismo sem vanguardas o que se afirmou entre nós, fixado na óptica de uma conciliação nacional sem sobressaltos nem alterações significativas, pontuado apenas por raros momentos de alguma euforia rupturista, afinal de poucas e tardias consequências.
[versão original: Modernismo e Vanguarda nas Colecções do Museu do Chiado – 1900-1940, Lisboa, IPM-MFTPJ, 2001, pp. 9-22).
1 | ↑ | Cf. Carta de Santa-Rita a Homem-Cristo Filho, A Ideia Nacional, nº 22, 27-4-1916. Cf. ainda sobre a afirmação do futurismo e de todo o modernismo em Portugal, José-Augusto França, A Arte em Portugal no séc. XX, 3ª edição. Lisboa, Bertrand Editora, 1991. Cf. Orpheu (edição facsimilada), 2ª edição. Lisboa, Contexto, 1994. Cf. Portugal Futurista (edição facsimilada), 2ª edição. Lisboa, Contexto, 1994. |
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2 | ↑ | Raquel Henriques da Silva, Museu do Chiado. Arte portuguesa, 1850-1950, Lisboa, IPM-Museu do Chiado, p. 348. |
3 | ↑ | Sobre os manifestos e textos de intervenção de Almada cf. Almada Negreiros, Obras completas, Vol VI. Textos de Intervenção. Lisboa, IN-CM, 1993, pp. 24-45. |
4 | ↑ | Fernando Pamplona, Chave da pintura de Amadeo. As ideias estéticas de Sousa-Cardoso através das suas cartas inéditas, Lisboa, Guimarães Editores, 1983, p. 58. |
5 | ↑ | Cf. entrevista de Amadeo Souza-Cardoso ao jornal Dia, 4-12-1916. |