No espaço do museu, a experiência da contemplação exige tempo, isto é, um exercício de profunda disponibilidade e despojamento, aliado à temporalidade do silêncio, até mesmo da nossa própria respiração. Por outro lado, todos reconhecemos que, apesar das suas diferenças temáticas, de coleções, tipologias e outras especificidades, os espaços museológicos são lugares de especial atenção, quer seja na sua dimensão identitária, histórica, memorial ou estética – esta última, de um modo deliberado ou involuntário, resulta inevitável, pela influência decisiva do dispositivo museográfico e do enfoque dirigido à apreciação pormenorizada, onde a luz, a vitrina ou a tabela acabam por induzir esse apogeu contemplativo. Por isso, no museu, qualquer objeto ganha uma aura de excecionalidade, não apenas pela sua nova e sedutora reordenação expositiva (e, desse modo, cultural), mas igualmente por uma espécie de rememoração e apelo à fisionomia da sua condição social primeva, esquecida ou tornada invisível nas convenções quotidianas e nos protocolos muitas vezes utilitários dos seus lugares de origem.
No fundo, o espaço de legitimação cultural que constitui o museu é um lugar de extraordinária projeção atenciosa, tendencialmente estetizante, cuja atmosfera inspira a criação de gestos de envolvência e concentração que convertem o tempo, e esse espaço específico, na celebração do espirito, no seu deleite ou comprazimento. Acontece que o tempo e a nossa disponibilidade para a contemplação mais profunda são valores cada vez mais esquivos à experiência contemporânea da visitação no espaço expositivo. Entre o tempo necessário e confortável à observação de uma peça e a dita experiência cultural que daí pode resultar, intromete-se quase sempre o conflito de um défice de atenção, determinado por uma espécie de ansiedade frenética, ritmada por agendas e horários a cumprir, que impõe, por isso, a fragmentação ou a descontinuidade contemplativa, tornando-a momentânea e ligeira, reduzida que fica aos escassos segundos afinal disponibilizados pela nossa perceção.
Face ao pouco tempo da observação in loco no espaço do museu, a contemplação do objeto real, apesar da sua aura ainda inexpugnável, tem vindo a ser complementada desde a última década com a disponibilização online da digitalização em alta resolução desses mesmos objetos que selecionamos para a nossa desejada fruição, em especial dos objetos que obedecem a uma visualização 2D, isto é, onde a bidimensionalidade do seu aparato permite tirar partido da pormenorização que a alta resolução disponibiliza no seu gesto de sedução. Aliás, essa contemplação mediada pelo ecrã do computador, ou até do smartphone, pode ser de tal modo envolvente que muitas vezes produz em nós a consciencialização de passarmos afinal mais tempo nessa tarefa indireta de observação do que aquela que alcançamos perante o objeto real. E é nessa experiência de complementaridade entre o real (de temporalidade escassa) e o virtual (mais abundante) que a contemplação e a análise das coleções de museu hoje se concretizam, de um modo mais ou menos estruturado ou diletante, conforme o estímulo e o interesse de cada um. Porém, poucos são os que contestam a importância atual desse movimento pendular, onde o virtual vai ganhando mais tempo, mais presença no nosso exercício de observação e conhecimento. Daí que a apresentação no início de janeiro de 2019, no Picadeiro do Museu Nacional dos Coches, em Lisboa, dos primeiros resultados concretos (mais de 3000 objetos e pinturas em 72 exposições virtuais) de um vasto trabalho de colaboração e parceria entre a Direção Geral do Património Cultural (DGPC) e a plataforma digital do Google Arts and Culture em torno da digitalização progressiva das coleções nacionais dos museus, palácios e monumentos tutelados diretamente pelo Ministério da Cultura, tenha assumido um protagonismo decisivo neste contexto de comunicação e desenvolvimento dos conteúdos dessas coleções junto de um público exponencial, determinado pelo acesso online em todo o mundo. O potencial de divulgação e conhecimento das mais importantes coleções nacionais portuguesas ficou assim mais perto de todos, apesar de condicionado à sua dimensão virtual. Todavia, sabemos hoje como esse “condicionamento” manifestado pela virtualização do real que podemos encontrar no espaço concreto do museu constitui uma das mais influentes expressões de comunicação na nossa cada vez mais tecnológica contemporaneidade. De outro modo, constatamos igualmente que a presença do virtual nas nossas vidas não só está a produzir um efeito de transformação ao nível da perceção do real como da sua própria essência e manifestação vital, revelando-se hoje o real como a expressão parcial, cada vez mais comum e quotidiana, do virtual. Ao mesmo tempo, os museus têm vindo a encontrar no domínio do virtual um aliado poderoso e incontornável no processo de mediação entre a investigação e divulgação científica dos seus acervos e programas e o público que os “visita”, ajudando a introduzir às novas gerações os conteúdos referentes a objetos reais decisivos na definição da identidade cultural portuguesa. A adesão desses novos públicos, mais jovens ou associados à chamada geração “millennium”, regista-se afinal no efeito de uma quotidianidade onde a tecnologia da imagem digital constitui a estrutura de um crescimento adverso, por razões ecológicas e ambientalistas, à impressão em papel, cada vez mais distante e dispensável. Estas são as gerações para as quais o virtual faz já parte, de um modo quase natural, desse real que persistimos ainda em identificar enquanto tal. E a familiaridade daqueles que hoje têm 10, 20 ou 30 anos de idade com a expressão virtual da vida, do lazer à informação de dados úteis e práticos, ou de formação, por exemplo, em torno do património e da cultura, produz um novo alcance de projeção desse legado, dessa herança que desejamos intergeracional, ao sublinhar um sentido de imediata disponibilização, como podemos identificar ao aceder na plataforma do Google Arts and Culture a um conjunto de conteúdos, imagens ou informações mais detalhados sobre a nossa cultura, que invadem os dispositivos tecnológicos hoje manuseados de modo comum um pouco por todo o mundo.
Neste sentido, e considerando que a tecnologia digital conquista diariamente mais terreno, centralizando as ações quotidianas e assumindo um papel de relevo no estudo, preservação e divulgação do património cultural junto dos mais diferentes tipos de público; atendendo igualmente à multiplicidade de inovações que surgem neste âmbito a um ritmo quase estonteante; constatando, por fim, a escassa aplicação de recursos digitais ao património cultural em Portugal, a parceria da DGPC com o Google Arts and Culture converteu-se, desde o desenho do protocolo assinado em finais de 2017, numa ferramenta essencial ao processo de difusão à escala planetária desse património ainda pouco conhecido além fronteiras, com exceção de alguns ícones mais associados ao período histórico da “Expansão Marítima” portuguesa, como a Torre de Belém ou o Mosteiro dos Jerónimos, localizados na zona ocidental de Lisboa. Por isso, desde o início de 2019, com a disponibilização online e em alta resolução (com recurso à tecnologia Google do Art Camera) de milhares de imagens – referentes a peças de coleção, documentos, edifícios históricos do nosso património arquitetónico, monumental e arqueológico, street view, entre outras – constitui uma relevante conquista também ao nível da acessibilidade, oferecendo a todos os ecrãs do mundo a possibilidade de uma mediação sedutora, mas rigorosa, sobre a memória histórica e a identidade cultural do nosso território. Ao mesmo tempo, é necessário lembrar ser este apenas o início de um longo percurso de aprofundamento ao nível da disponibilização digital das coleções nacionais e do património português, pois trata-se de um verdadeiro work in progress, que confirma e desenvolve, lançando ainda uma visão de futuro, a excecional oportunidade de aplicar algumas das mais recentes e exponenciais tecnologias da imagem digital na divulgação da identidade cultural do nosso país.
Há, todavia, algumas vozes dissonantes e críticas sobre a adoção do digital na prática museológica, alertando para os efeitos “perversos” de uma espécie de substituição do real pelo virtual. Essa reflexão é necessária, mas não pode, nem conseguirá, impedir o processo de aplicação das tecnologias de representação virtual na área do acesso generalizado aos valores estéticos e históricos do património cultural.
Na verdade, à avalanche da expressão virtual no espaço do museu, há quem responda com o imperativo de resistência que, aparentemente, nos confia o real, com os seus manifestos objetos e materialidade. Dizem-nos que os museus devem manter-se, em nome da sua condição e origem, como agentes de resistência, defendendo o real por oposição à omnipresença da sua virtualização. Questiono-me, porém, se os museus não foram os primeiros agentes de virtualização e manipulação do real. Recorde-se que, entre os séculos XV e XIX, apanhados pela novidade surpreendente das grandes viagens marítimas e, mais tarde, febre da razão, pelo espírito colecionista e a construção das suas narrativas (científica, histórica e identitária), os “gabinetes de curiosidades” (primeiro) e os museus (depois) guardaram e inventariaram com empenho os objetos que antes, na sua quotidiana naturalidade, haviam pertencido apenas ao mundo real. Estes, quando foram parar ao museu, ganharam um novo espaço de observação mas, apesar do seu valor inequívoco enquanto veículos de conhecimento, identidade e memória, afirmavam já, sobretudo, um distanciado sentido desse real agora apenas evocado, criando ao mesmo tempo, lentamente, um novo real, o da narrativa museológica. E não será a memória, por sua vez, o primeiro instrumento de virtualização do real, por exemplo, daquele que já não existe, nem deixou vestígios materiais e, por isso, só pelas sinapses pode ser recuperado? Andando rápido, podemos intuir que, se os museus produziram o seu próprio real, hoje defendido como resistente à invasão do virtual, talvez o virtual esteja também ele a produzir um novo real, um dia defensável como último reduto dessa origem supostamente primeira, onde a vida comandava o uso natural dos objetos. Perante todas estas dúvidas e especulações, mais de que uma opção entre o real e o virtual, será seguramente mais produtivo assumirmos todos, tutelas, instituições museológicas, agentes culturais e público, um posicionamento de equilíbrio e complementaridade sobre as relações de comunicação e dependência que envolvem atualmente as manifestações e o reconhecimento, por vezes difusos, do real e do virtual. O património cultural, a sua beleza estética, requinte artístico, importância histórica e identitária, sairão sempre beneficiados, pelo menos, no aspeto essencial da sua promoção planetária, da sua disponibilização imediata e necessária, sobretudo ao nível de um primeiro contacto que, todos o sabemos, produz muitas vezes a magia e a esperança de experienciar um dia o objeto original aí representado. Recordemos que os museus que, na última década, apostaram largamente na disponibilização digital e gratuita das suas coleções, têm vindo a registar um acréscimo exponencial do número e da diversidade de públicos. O Rijksmuseum de Amesterdão, a National Gallery de Londres, o Satens Museum for Kunst de Copenhaga, ou o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque são disso exemplo, confirmando-se, assim, que o virtual não dispensa o real, antes aguça o desejo crescente de uma espécie de confirmação existencial do real pré-observado nas reproduções digitais que nos cativam mas também inspiram a perceção. Aliás, a confirmação de que a reprodução extraordinária de uma peça única resulta sobretudo na promoção da importância experiencial do seu original pode ser atestada pela história da pintura mais conhecida em todo o mundo. A Mona Lisa (ou Gioconda) de Leonardo da Vinci, que “sobrevive” desde 1797 numa das principais salas do Museu do Louvre, em Paris, foi desde muito cedo comentada e reproduzida pelas várias técnicas de gravura e práticas de cópia registadas desde o século XVI, e ainda hoje é “esmagada” diariamente por milhares de pessoas e máquinas fotográficas que captam e ampliam mais um ângulo do sorriso feminino mais reproduzido de sempre. Com efeito, a partir de impressões em livros, revistas, postais, desdobráveis, ecrãs ou plataformas digitais, a Mona Lisa transformou-se num ícone da história da arte não apenas pela excelência do seu contributo artístico, como pelo efeito de divulgação global que os seus milhões de reproduções têm ativado ao longo dos anos em quase todos os cantos do mundo. Deste modo, não devemos recear o facto de a nossa contemporaneidade constituir a expressão cada vez maior de um abraço do virtual sobre o real concreto, confundindo-se até, em muitos sentidos, de modo inebriante, com a sua manifestação. Entre os aspetos mais positivos e as inquietações que, apesar de tudo, ainda prevalecem, resultantes dessa fusão aparentemente imparável, devemos apostar no processo de consciencialização sobre as diferenças e aproximações que o real e o virtual ainda hoje nos apresentam, desconhecendo, porém, o caminho a que nos conduzem as quase diárias inovações neste domínio tecnológico e comunicacional. Mas apesar da azáfama dos nossos dias, a contemplação, o silêncio e a temporalidade que esta exige, manter-se-ão à mercê da nossa própria decisão. Mesmo que inconscientemente manipulados e seduzidos pela experiência digital, seremos sempre nós, observadores apaixonados do património cultural que nos rodeia, a exercer a liberdade contemplativa que os pormenores de um objeto ou de uma obra de arte sempre convocam, do fundo da sua imagem e dos significados que esperam a nossa atenção, a nossa descoberta. E esse processo absolutamente mágico representa tanto a expressão do real que perante nós se afirma, como do virtual que o nosso cérebro é capaz de produzir através do imaginário ou da aventura da significação.
[versão original, AAVV, in RM – Revista de Museus, nº 2, Direção-Geral do Património Cultural / Ministério da Cultura, 2019]