2005 Sinais Lucrecia Martel

Sinais

 

Depois do politicamente metafórico “O Pântano”, Lucrecia Martel – a mais importante realizadora de uma Argentina que quer reencontrar o seu lugar no mundo – regressa agora com “A Rapariga Santa”, um filme subtilmente intenso, que atrai desde logo dois grandes universos de espiritualidade: o religioso e o humano. Entre o misticismo ingénuo da adolescência e o catecismo mais ou menos revelado, Amália (Maria Alché, em excelente interpretação para uma jovem estreante) serpenteia-se, distante e acossada (apesar do amor e da amizade que a rodeiam), pelos corredores labirínticos do hotel da sua mãe, que recebe por esses dias um dos muitos congressos de medicina que durante todo o ano invadem a cidade de Buenos Aires. Logo desde o início somos obrigados a entrar no jogo da uma fé dividida entre o espírito e a razão: de um lado, as palavras da oração, do outro, as conferências da ciência médica. No meio, está vida e as suas profundas metáforas, por certo o mais importante e revelador em todo o filme. Do chamamento divino, Amália e Josefina – duas meninas do coro, inseparáveis até ao último mergulho – procuram os sinais da sua missão, do seu papel na terra, na esperança de uma revelação que lhes oriente o caminho ou um sentido para a vida. Entre a obscuridade dessa iniciática ligação, as duas amigas vão descobrindo (sem o saberem) como tudo na sua vocação se mistura e confunde, passando do isolamento incompreendido da adolescência ao poder da afirmação titubeante da sua própria personalidade, e sobretudo da descoberta quase mística do erotismo à sexualidade do corpo e da mente, numa troca de sentidos e do sentir que parece ainda invocar uma enigmática mas essencial manifestação divina. É como se os valores da paixão e do amor de Cristo se transformassem inadvertidamente na experiência do crescimento físico e psicológico das duas raparigas. No assédio timidamente perverso e nunca assumido do omnipresente Dr. Jano (Carlos Belloso) – um dos vários médicos hospedados no hotel da mãe de Amália (também ela em busca do amor e do prazer, depois de um divórcio que se lhe cola ao corpo e à vida) – a jovem “santa” vê o sinal mais forte e definitivo da sua relação com o espírito divino, mantendo uma silenciosa tarefa de auto-descoberta que acaba invertendo o ímpeto desse homem aparentemente mais maduro mas igualmente confundido na expressão dos seus sentimentos. Já Josefina (que todos tratam por José) mergulha numa confusa relação de sensualidade com o seu jovem primo, que lhe permite todavia manter ainda a virgindade, impedida que está, pela sua fé religiosa, de consumar qualquer relação amorosa pré-nupcial. Apesar das muitas dúvidas e desilusões, as duas jovens realizam em parte as suas mais profundas e prementes ansiedades, entre a espiritualidade religiosa, a fé e a libertação inadiável da sua libido. Confusas e rodeadas por familiares que julgam educá-las para o bem (mas que apenas manifestam afinal a ambiguidade ou o vazio da sua existência) são elas contudo as rainhas da sua própria experiência sensual, assumida como uma crença livre e inabalável no futuro das suas vidas, algo que se perdeu do olhar de todos os adultos deste filme. À abstracção perdida destes, Amália e Josefina respondem com essa centelha de alegria, contida nos seus rostos adolescentes, de uma beleza virgem, quase mística.

Optando por uma sequência extraordinária de grandes planos – que metaforizam não apenas o carácter fragmentário da observação médica, tão científica e pretensiosa quanto perdida no orgulho isolado dos seus auto-proclamados congressos, como ainda o desejo implícito de um misticismo envolvente, que complete ou complemente afinal esse outro messianismo que sustenta todo o projecto da grande ciência – Lucrecia Martel converte a sua narrativa numa subtil ligação entre as imagens e o sussurro das palavras, entre o chamamento religioso e o apelo da medicina, o mundo adolescente e a maturidade da fase adulta, fazendo referência a uma tradição mística de grande densidade espiritual, que une Santa Teresa de Ávila a grandes poetas românticos como Lord Byron ou Novalis, pontuando ainda uma espécie de homenagem indirecta (ou iconsciente?) a cineastas tão decisivos nas sua relação com a espiritualidade humana e religiosa como Ingmar Bergman, Carl Dreyer ou Robert Bresson. Apesar do valor de “A Rapariga Santa” e de todo o seu universo referencial, Lucrecia Martel parece ter ficado às portas de uma outra dimensão, mais intensa e arrebatadora – resta saber se por vontade própria ou por alguma espécie de inabilidade.

 

“A Rapariga Santa/La Niña Santa” (Argentina/Itália/Holanda/Espanha, 2004) ***
Realização: Lucrecia Martel

Actores principais: Maria Alché, Carlos Belloso, Mercedes Morán

 

(in Vida Ribatejana, 12-1-2005)