Entre o sonho e a realidade, a primeira longa-metragem de Alain Guiraudie produz um imenso e extraordinário universo poético de cariz existencial, marcado por um peculiar onirismo, onde a terra, a paisagem e o quotidiano da província se elevam ao nível subversivo de uma narrativa sempre em espiral, adversa a qualquer síntese mais oportunista.
Esta estranha película percorre ainda os géneros cinematográficos com a subtileza e coragem surrealizante de um absurdo tornado real, precisamente a partir de uma livre exploração da irrealidade mais libertina. Do “western” ao “policial”, passando pelo “thriller” e pela influência da B.D., Guiraudie elabora uma onírica reflexão acerca da inocência desviante e da sua relação com a linearidade da vida adulta, acentuando contudo um espírito de aventura espiritual que desemboca nas mais profundas e eternas questões, nomeadamente o sentido da vida e a sua relação com esse enigma maior que é a morte. Com efeito, tudo gira em torno de Basile Matin (Thomas Suire), um personagem desorientado e obsessivo que vagueia pela interminável noite da vida, perseguido pelo misterioso ser imaginário que é “Faftao-Laoupo”. Este assegura-lhe apenas uma estranha forma de sobrevivência, pois Basile não pode dormir nunca, sob pena de acordar pela última vez, antes de morrer para sempre. Mas aqui ninguém morre em definitivo, porque a vida depende da capacidade de enveredar pelo sonho, tudo enredando nesse limbo de incerteza que caracteriza a fronteira entre o real e a imaginação. Por isso, todos os dados narrativos desta história estão magnificamente presos ao conflito dual que sempre nos enforma, entre o bem e do mal, o dia e a noite, a fuga e o compromisso, a identidade e o desenraizamento.
A metáfora contida no próprio título da obra remete para uma espécie de incansável viagem em busca da identidade ou da bússola momentânea, pontuada por bizarras personagens que aprendem a volatilizar-se pelos céus de um Sul rural e livre dos constrangimentos sociais das grandes cidades. Basile e Johnny Goth (o jornalista/detective protagonizado por Laurent Soffiati que procura desvendar a verdadeira personalidade de Basile), entregam-se assim ao jogo da vigília do sono como numa freudiana atmosfera de incapacidade real, soando um esforço inglório para alcançar apenas um pedaço de felicidade efémera, tão inconstante quanto as premissas dessa transacção que aprisiona, como num pesadelo que por vezes em nada se distingue da realidade, todos os gestos e acções daqueles que se cruzam e voltam a cruzar nesta excêntrica mas rigorosa narrativa. Por aqui passam certamente, a toda a vela e a cavalo no acaso, os bravíssimos Srs. Freud, Alfred Jarry, Lautréamont, Raymond Roussel, os mais inveterados dadaístas e, de modos distintos, os cineastas Georges Méliès, René Clair, David Lynch, Federico Fellini, Otar Iosseliani, Jean Renoir, Luis Buñuel ou Jean Vigo. O cinema também é isto: sonhar até morrer!
“Os Bravos Não Têm Descanso ” (França/Áustria, 2003) ****
Realização: Alain Guiraudie
Actores principais: Thomas Suire, Thomas Blanchard e Laurent Soffiati