2022 «Todo o objeto amado é o centro de um paraíso» Marcel Duchamp

«Todo o objeto amado é o centro de um paraíso»

 

O título desta pequena comunicação devo-o a Novalis.[1] O verso, do fundo do romantismo do seu autor, evoca a extraordinária dimensão de espiritualidade que pode ligar um sujeito ao objeto amado.  E esse “paraíso”, até hoje inconfesso, serve aqui o propósito metafórico de uma declaração de intenções, assumidamente pessoal e talvez transmissível: Duchamp é o meu bezerro de ouro.

Segundo a enciclopédia mais fácil de convocar, a wikipedia: “Bezerro de ouro é o ídolo que, de acordo com a tradição judaico-cristã, foi criado por Arão, quando Moisés subiu o Monte Sinai para receber os mandamentos de Deus. O povo de Israel forçara Arão a criar então um ídolo que os reconduzisse ao Egipto, onde haviam sido escravos. Este incidente é conhecido como ‘O pecado do bezerro’ e é descrito na Bíblia, no livro de Shemot (Êxodo 32:1-8). O bezerro de ouro também é referido noutra passagem bíblica, em I Reis 12:28-32 quando o reino de Israel é dividido e o rei Jeroboão I, que fica com uma parte do reino sem ter descendência real, cria dois bezerros para o povo adorar, e esquecer o Deus da linhagem Real. Na linguagem corrente, a expressão ‘bezerro de ouro’ tornou-se sinónimo de um falso ídolo, ou de um falso “deus” por exemplo, simbolicamente, o dinheiro. Lendas antigas que, dizem alguns eruditos, terão sido confirmadas por descobertas arqueológicas de 1929, admitindo a história de que o bezerro de ouro foi trazido do leste da Europa para a pequena cidade de Lierna, no Lago de Como, onde foi enterrado.”[2]

O que me interessa aqui é a ideia de bezerro de ouro como falso deus. E, assumo-o, Duchamp é um falso deus, na medida em que, para um ateu praticante, tudo o que possa ser identificado como expressão ou presença de um deus, é uma falsidade facilmente verificável. Mas, tal como disse Fernando Pessoa, outro poeta, “nada se sabe, tudo se imagina”,[3] e gosto de imaginar Duchamp como o meu bezerro de ouro.

O convite para aqui estar hoje teve como premissa, e cito, “a ocupação em demasia com um objecto”, e centra-se na problematização do estatuto do objecto. Pois bem, vou vestir o desafio de reflexão de um modo bastante literal. Desde a minha aproximação ao universo das artes visuais, a figura de Duchamp impôs-se, talvez pela natureza da então minha condição adolescente, como um negativo de efeito imediato sobre o meu interesse em torno da questão primordial, “o que é, ou melhor, o que pode ser arte?” Tudo se desenvolveu sob esse princípio de questionamento que acabou influente e bastante produtivo na minha vida (independentemente do valor dos resultados). Há quem me acuse disso mesmo, de ter começado pelo lado errado, o lado B. Ora, estou convicto que não existem fórmulas fechadas neste processo, e começar a interpretar arte pelo filtro do readymade é tão legítimo como qualquer outro exercício de aproximação. Aliás, algumas das melhores músicas são gravadas do lado B dos discos. Passados mais de trinta anos sobre esse gesto original, continuo absorto na problemática duchampiana com o mesmo entusiasmo e, sobretudo, com a mesma disponibilidade.

Vem isto a propósito de uma paixão pelo trajeto de Duchamp e, ao mesmo tempo, pelo primeiro objeto readymade (a “Roda de Bicicleta, 1913) por si produzido (mas não apresentado) que me apressei então a reconstituir, levando-o comigo para todas as casas que tenho habitado, e onde permanece bem perto dos meus livros de arte (outra obsessão) e do meu espaço de leitura e convívio familiar que é a chamada “sala de estar”. E estou, muitas vezes, junto desse readymade reconstituído, não assinado nem datado, como se de um marco afetivo se tratasse, e trata, na verdade. Quantas vezes não faço circular a minha “Roda de Bicicleta”, observando a sua progressiva perda de energia até à completa imobilidade. Imagino Duchamp nesse gesto de convívio com o objeto. Especulo como lhe deve ter produzido um efeito tranquilizador (tal como reconhecido pelo próprio), a proporcionar momentos de vício gestual e reflexivo. Há quem tenha animais, eu tenho a “Roda de Bicicleta”. Sei que a afirmação é perigosa, mas sempre gostei de correr riscos. Aprendi com Duchamp a ousar a experiência e o convívio com objetos aparentemente inusitados como mecanismo de pensamento, como processo de significação livre, mas não arbitrária. Note-se que Marcel Duchamp exigia a si próprio, como processo de seleção de objetos readymade, a “beleza da indiferença” (estética) e uma posterior conceptualização contemplativa. Converteu-se, com essa prática, no responsável pela “viragem linguística” na arte do século XX. Podemos mesmo afirmar que Duchamp inventou com o readymade uma nova linhagem de objetos artísticos: os objetos linguísticos ou “esculturas linguísticas” (expressão de Jean-Jacques Lebel – filho de Robert Lebel. Lembro que este publicou em 1959 um célebre livro sobre Duchamp, recentemente reeditado por Jean-Jacques).[4]

Será ainda necessário atender à relação entre desejo e objeto na obra de Duchamp. Segundo Freud, os amantes de objetos são fetichistas e procuram, em tese, ativar um mecanismo de compensação psicológica perante a perda afetiva de uma dada realidade. Porém, o fetichismo que Freud inventou com a sua psicanálise não explica muitos aspetos sobre a nossa relação com os objetos amados. Pelo menos no meu caso com a “Roda de Bicicleta”, isso é garantido. Na verdade, gestos de apropriação e deslocamento consagrados pela prática do readymade constituem um campo alargado para exercícios de especulação mais ou menos relevantes e essa é uma das vantagens de tudo aquilo que tem início de um modo inesperado e não pensado. Por exemplo, o desejo de experimentar acoplar uma roda de bicicleta a um banco de cozinha é algo que não obtém facilmente uma explicação racional e convincente. As leituras psicanalíticas poderão sugerir significados de ordem simbólica em torno do sexo, mas o seu interesse está, no meu entender, muito para além das hipóteses mais científicas ou razoáveis. Gosto de pensar, de modo livre, na opticalidade cinética da “Roda de Bicicleta” como um desafio simultaneamente táctil e visual, como um gesto de repetição inane, mas inevitável. Gosto da inutilidade do movimento da roda, assim como do seu som, das paragens bruscas e dos seus efeitos nas minhas mãos. Gosto de recordar como os meus filhos gostavam (e por vezes ainda gostam) de fazer rodar essa roda nas minhas costas, como quem conquista um desafio de autoridade perante um objeto aparentemente artístico e, nessa medida, quase intocável. Mesmo que nunca tenha proibido os meus filhos de o fazerem, e tenha até promovido essa aproximação livre, a verdade é que a aura de objeto de arte (com a qual Duchamp sempre jogou também) se impõe enquanto proibição táctil, resultado da temporalidade alcançada ao longo do último século nessa relação entre sujeito e objeto (artístico). Gosto de gostar dessas ideias e de como elas me levaram a replicar a presença na minha vida de um objeto com estas características. Entre o espectro da presença de um objeto de arte, a ludicidade do exercício do seu manuseamento e o vicio da convivência com essas possibilidades articuladas, a minha “Roda de Bicicleta” produz o efeito de uma centralidade vital que, como nos lembra Novalis, pode ser o “centro de um paraíso”. Amar um objeto pode ser entendido como o princípio de uma doença psicológica, de uma falha na nossa relação com o mundo, mas prefiro pensar na natureza apaziguadora dessa relação, ou no sentido que, em termos subjetivos (agora parcialmente partilhados), poderei desocultar a partir das características dessa margem de desejo que me levou a replicar não apenas o objeto (talvez sugerido igualmente pela facilidade técnica da sua concretização) como sobretudo os gestos de relacionamento por ele desencadeados. Em particular, essa circularidade em movimento promovida por uma manualidade que é, quase paradoxalmente, potenciada pela contemplação. Duchamp chegou mesmo a dizer sobre o movimento na experiência da “Roda de bicicleta”: “To see that wheel turning was very soothing, very comforting, a sort of opening of avenues on other things than material life of every day. I liked the idea of having a bicycle wheel in my studio. I enjoyed looking at it, just as I enjoyed looking at the flames dancing in a fireplace.”[5]

E, para finalizar, deixo aqui esta interrogação provavelmente bastante comum a todos os que já estiveram perto de uma “Roda de Bicicleta” de Duchamp: Quantas vezes não desejaram mover essa roda? E quantas vezes não reclamámos em pensamento com os princípios da conservação museológica que, perante cada ocasião, nos oprimem o impulso desse gesto? Por isso, na “Roda de Bicicleta” musealizada, o gesto é contemplativo e o movimento conceptualizado pela leitura da sua apresentação objetual. Confesso, uma vez mais, que não resisti a ultrapassar essa proibição, simulando a obra de arte para uso doméstico, dando início assim a uma grande amizade, ou a um amor insuspeito entre sujeito e objeto.

 

[Comunicação lida no Colóquio Internacional «On abstraction / Da abstracção», “Objetos, abstracções e desvios ou o caso limite do desaparecimento”, ESAP – Escola Superior Artística do Porto, 17-06-2022]

 

[Na imagem, a minha filha Leonor em aproximação à “Roda de Bicicleta”, Vila Franca de Xira, 15 Novembro de 2006]

References
1 Novalis (Georg Philipp von Hardenberg | 1772-1801), in Fragmentos de Novalis, (seleção, tradução e desenhos de Rui Chafes), Lisboa, Assírio & Alvim, 1992, p. 33.
2 Cf. https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Bezerro_de_ouro
3 Cf. Odes de Ricardo Reis. Fernando Pessoa, (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa, Ática, 1946 (imp. 1994), p. 92.
4 Cf. Robert Lebel, Marcel Duchamp, (trad. Inglesa de George Heard Hamilton), EUA, Grove Press, 1959. Reeditado em 2021 pela Hauser & Wirth Publishers, sob a coordenação de Jean-Jacques Lebel e da Association Marcel Duchamp.
5 Cf. https://www.moma.org/collection/works/81631