2019 a pequena memória das grandes cidades tóquio

a pequena memória das grandes cidades

I have seen more than I remember, and remember more than I have seen

Benjamin Disraeli

 

Na substância espessa do hosho, esse papel branco que nos toca ao primeiro olhar, Tóquio casou em mim o mundo contemporâneo e a ancestralidade, a margem inspirada de uma cultura que sabe poetizar as pequenas coisas da vida, recorrendo à contemplação, aos sentidos e à sublimação. Dos passos ligeiros aos gestos de saudação, tudo parece sintonizado, em harmonia. Aos olhos incrédulos, os meus, perfila-se ainda um espaço urbano por vezes quase imaculado na depuração e no respeito público pela natureza, elementos suscetíveis de participarem na nossa existência efémera, superando o tédio na tranquilidade luminosa do rigor. A fim de acrescentar às imagens, aquelas que agora evoco, uma beleza pouco comum, replico aqui o entusiasmo dessa inocência recuperada, a mais forte intuição da vida plena. No Ocidente, o sublime resulta muitas vezes do fascínio pelo desastre ou da transcendência responsável pela súbita desestabilização da normalidade. Se, como nas palavras de Edmund Burke, o sublime «é aquilo que produz a mais forte emoção que o ânimo é capaz de sentir», então pode significar ainda um enigmático sopro de perfeição, como em Asakusa, nas pétalas de Ueno ou no frenesi de Shibuya. Forte sentimento de obediência às superiores forças de uma megalópole onde, apesar da dinâmica cosmopolita, o silêncio se manifesta como experiência íntima e delicada. Nos parques verdes e serenos ou no betão que os rodeia, conciliam-se os homens, as máquinas, os poemas Haiku, as ruínas do Castelo Edo, o movimentado Templo Senso-ji, os arranjos florais Ikebana, a descoberta do Santuário de Menji, ou a memória de um sabor noturno: Sudachi Soba, esses noodles cobertos com finas rodelas de limão. Uma felicidade indizível permanece em mim como leve ressonância, resultado de uma profunda empatia, isto é, quando as propriedades vitais que sentimos num objeto ou numa pessoa são, na verdade, a projeção dos nossos próprios sentimentos. E essa experiência que, de modo mágico, me ligou para sempre a esta grande cidade do Extremo Oriente, significará também uma outra expressão do sublime da vida, o reconhecimento do seu valor, como instante e memória de uma viagem imprevista mas inesquecível. Paul Theroux escreveu que «a viagem é fuga e perseguição em partes iguais.» Talvez seja esta a síntese do meu desejo, regressar ao Japão e ao seu modo de vida, se possível, muitos dias da minha vida.