A arte é o único lugar onde se faz o que se quer. Isso é liberdade.
Paula Rego
Tudo o que diz respeito à condição da mulher parece encontrar na pintura de Paula Rego um aliado inevitável e preciso. Desta vez, Lisboa recebe, em dois espaços de exposição bem distintos, três séries de trabalhos recentes, entre pinturas a pastel de óleo, gravuras e desenhos. Em comum, uma vez mais, a temática da violência sobre o corpo e o espírito, na revelação simultaneamente mais clássica e moderna das especificidades desse vínculo que é a pintura, seja na figuração do conflito bélico e dos inocentes que nele participam, seja na solidão das mulheres (ou da mulher criança), no sofrimento e no abandono a que são forçadas face à interrupção da gravidez. Realidades apenas dissimuladas nos nossos dias por ação de uma hipocrisia temperada, falsamente progressista.
Na Galeria 111 podemos ver uma série de gravuras intitulada A Cruzada das Crianças, onde se evoca um particular cruzamento de referências históricas e lendárias relativamente à utilização de menores nas guerras medievais pela reconquista de Jerusalém, estabelecendo-se aí o paralelo com factos recentes que continuam a ensombrar a humanidade, do Ruanda ao Kosovo.
Já no Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian, apresentam-se as séries mais importantes: O Crime do Padre Amaro, inspirada diretamente na trama queiroziana, e o fortíssimo conjunto Untitled, recentemente mostrado com sucesso na Marlborough Gallery de Londres e que marca uma declarada posição política da artista sobre o aborto clandestino, remetendo as duas séries, no seu conjunto, para um mesmo espaço de reflexão: o miserabilismo moralista da sociedade portuguesa e a sua tendência para a leitura superficial, que encontra na acusação fácil uma resposta para tudo. Depois de uma visita pelo piso primeiro do CAM, entre «parteiras e abortadeiras», uma ideia persiste: afinal, pouco ou quase nada mudou no nosso país, entre a denúncia de Eça de Queiroz e a recente derrota da proposta de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez. Entre o final do século XIX e o início do próximo milénio, Portugal revela-se ainda demasiado dependente dos valores da Igreja, da sua retórica milenar, alinhando assim com os países mais conservadores e retrógrados da Europa. O pretexto da literatura, espécie de impulso mágico, constante em todas as fases do seu percurso, não impede a artista de vaguear pelas imagens da sua infância, confundi-las com a história do Padre Amaro e sobreviver-lhe, como sempre, procurando «encher os espaços» com figuras ambíguas, na sua violência e substância, ao mesmo tempo frágeis e perversas, falsas e verdadeiras. São símbolos e personagens de forte pendor metafórico. Na série Untitled, o que os trabalhos de Paula Rego expõem de forma direta é, antes de mais, o desespero relativamente ao atavismo que nos rodeia, mesmo considerando as peculiaridades intrínsecas a uma questão como a do aborto e todo o rol de interpretações «humanistas» que esta facilmente arrasta consigo. Por outro lado, o que particulariza estas pinturas é o paradoxo da sua condição, entre um formalismo clássico e a modernidade de conteúdo que a alimenta. Paula Rego confirma assim a sua estética como uma das mais ricas no que diz respeito à leitura sobre o estatuto da mulher e o seu lugar na sociedade contemporânea. Mesmo que a crítica a aproxime quase sempre da tradição figurativa da «Escola de Londres», surgida na herança de Frank Auerbach, Francis Bacon, Leon Kossoff ou Lucien Freud, o certo é que toda a obra de Paula Rego depende, no essencial, da sua experiência portuguesa, de uma infância vivida perto das mulheres que povoaram a sua vida, não necessariamente de «boas famílias». Basta olhar algumas destas obras para, de novo, sentirmos a brutalidade implícita ou metonimicamente sugerida. É um regresso à imagem mais forte desse jogo persistente entre o bem e o mal, a razão das suas figuras, ou o modo insinuante como tudo se mantém. Na justificação da maioria, trata-se de «salvar vidas» e acabar com o «egoísmo das mulheres». Do ponto de vista moral, parece tudo tão simples e eficaz. Contudo, Paula Rego sabe que não é assim. Uma vez mais, ela vê na figura da mulher a imagem mais contida do caos e da dor. Isolada, a mulher tratará de tudo. Ela e talvez uma parteira num vão de escada.
[versão original in O Independente, 28 maio 1999)
[imagem: Paula Rego, Untitled, 1998]