Torturas e lavagens cerebrais são expedientes caros às práticas subterrâneas dos conflitos militares. Longe dos olhares e dos princípios dos direitos humanos, aí tudo vale para obter informações secretas, preciosas na guerra do poder. As regras internacionais, ou a ética militar, não fazem parte deste jogo e os seus meandros raramente chegam à opinião pública. Digamos que são o lado mais sombrio onde se esconde o pútrido das nações.
Jonathan Demme (autor de “O Silêncio dos Inocentes” ou de “Philadelphia”) propõe aqui um “remake” actualizado de “The Manchurain Candidate”, filme realizado por John Frankenheimer em 1962, e que tinha Frank Sinatra no papel, agora desempenhado por Denzel Washington, de um militar na reserva que apresentava estranhas perturbações psicológicas, depois de ter participado em missões de guerra no estrangeiro. O paralelo é feito entre a Guerra da Coreia e a Guerra do Golfo de 1991. Mas se, no primeiro caso, falamos de um conflito enquadrado pelo secretismo da “guerra-fria”, e pelas lavagens ao cérebro praticadas pela secreta chinesa, já em “O Candidato da Verdade” (na desastrosa tradução portuguesa) observamos uma significativa evolução tecnológica, envolvendo uma ardilosa manipulação da memória, num misto de mutação genética e controlo remoto por hipnose.
A narrativa deste “thriller político”, com nuances de infortúnio psicológico, desenvolve-se a partir do resultado de uma emboscada sofrida por um grupo de militares norte-americanos em plena “Tempestade no Deserto”. Um dos militares envolvidos é Raymond Shaw (Liev Schreiber), o filho de uma família de senadores que servirá desde aí, sem o saber, uma experiência laboratorial comandada pela “holding” “Global Manchurian”, a mesma que, segundo um dos personagens, “patrocina, desde Nixon, todos os candidatos à presidência dos EUA”.
Ainda no Médio Oriente, vários chips são introduzidos no corpo e no cérebro dos militares, com vista a “reinventar” o real ou a sua memorização, fazendo do delfim político um condecorado herói de guerra, distinção capitalizada desde aí a favor de uma intocável carreira política. Mais de dez anos após o sucedido aparecem os primeiros sintomas de dúvidas e perturbações em relação àquilo que deviam ser as memórias de um corajoso acto de altruísmo e solidariedade militar. Em prol da verdade, o capitão Marco (Denzel Washington) inicia então a sua cruzada contra uma gigantesca conspiração, investigando a origem das suas alucinações quando percebe que Raymond Shaw é candidato à vice-presidência norte-americana. Este beneficia então de uma carreira política laboriosamente construída pela acção da sua mãe, a senadora Eleanor Prentiss Shaw (Meryl Streep), instruindo os bastidores do seu partido num estranho compromisso com a “Golbal Manchurain”.
Perante a hipótese da eleição de alguém que, nas palavras de Marco, será apenas “um fantoche na Casa Branca” manipulado à distância por uma “holding”, o perturbado capitão do exército consegue ainda, como convém num bom “thriller” moralista, evitar o descalabro da democracia e salvar o mundo de uma ameaça invisível mas totalitária, ou seja, o esvaziamento completo da vida política e dos valores da representatividade democrática no domínio total exercido pelos grandes interesses económicos. Iniciada pela extrema mediatização das campanhas, cada vez mais dependentes dos apoios privados, a transformação da acção política num espectáculo total surge assim como o eixo temático de um filme que, recuperando ainda outro tema de eleição no cinema contemporâneo: a manipulação da memória – basta lembrar “O Despertar da Mente” de Michel Gondry – tem nas interpretações de um excelente elenco a sua maior virtude. Denzel Washington, com uma actuação enxuta e segura o suficiente para dar verosimilhança ao seu personagem, e Meryl Streep, num dos seus melhores papéis secundários, apoiam Liev Schreiber numa interpretação também ela bastante conseguida. Quanto ao resto, fica a ideia de que Jonathan Demme cumpre apenas uma realização profissional mas sem chama, criada pela atmosfera de paranoia que invadiu a América desde o 11 de Setembro.
“O Candidato da Verdade/The Manchurian Candidate” (EUA, 2004) **
Realização: Jonatham Demme.
Actores principais: Denzel Washington, Meryl Streep e Liev Schreiber
(in Vida Ribatejana, 17-11-2004)