Todas as liberdades são admitidas para a arte, excepto o de não ser clara.
Ozenfant e Le Corbusier
“Il n’y a pas de sculpteurs seuls, peintres seuls, d’architectes seuls. L’événement plastique s’accomplit dans une forme une au service de la poésie». Le Corbusier sintetiza aqui a sua mundividência criativa, no desenvolvimento dessa ideia de vida moderna mais abrangente e transformadora que significou o legado da Carta de Atenas. Arquitectos, pintores e escultores deveriam na verdade trabalhar em conjunto e em sintonia estética e processual, convertendo a paisagem criativa na elevação de uma nova humanidade, fruto da ciência, do espírito artístico e da experiência colectiva ditada pela acção política e social.
Na referência essencial ao “número” e à “proporção”, Charles-Édouard Jeanneret (Le Corbusier) analisa com Amédée Ozenfant, desde “Depois do Cubismo” aos anos da revista “L’Esprit Nouveau”, o propósito da “forma una” para dar expressão à utopia de uma visão global e unificadora da criatividade. Arquitectura, urbanismo, escultura ou pintura fazem parte da grande unidade criativa e produtiva que deve caracterizar o homem moderno. Com efeito, no prólogo de “Depois do Cubismo” afirma-se de modo peremptório: “empregaremos o termo ‘Purismo’ para exprimir numa palavra inteligível a característica do espírito moderno.”[1]
Mas se, por norma, os “ismos” congregam valores que se pretendem dominantes e universais, mais ambicioso ou até pretensioso se apresenta um “ismo” que se associa à ideia de purificação. O Purismo seria hoje uma proposta politicamente incorrecta, descabida ou até considerada perigosa face ao relativismo reinante que desdenha toda e qualquer ideia de totalidade projectada pelo ser humano. Há razões históricas para duvidarmos da megalomania modernista, nomeadamente a sua associação mais ou menos directa aos totalitarismos de meados de Novecentos. Na verdade, só o termo Purismo remete desde logo para algo distante e desacreditado, pois a ideia de purismo está ligada ainda ao puritanismo e, por conseguinte, a um humanismo crente na sua inocência todo-poderosa. Porém, é necessário perceber o contexto histórico da sua afirmação, e reconhecer que Corbusier e Ozenfant pretendiam sobretudo levar às últimas consequências um projecto pictórico, mas também fenomenológico, absolutamente radical: o Cubismo. O extraordinário desejo de purificar as coordenadas estéticas do Cubismo é aliás partilhado, ainda que com outros resultados e consequências de ordem artística e cultural, com movimentos estéticos modernistas como o De Stijl, o Construtivismo Russo ou a Bauhaus. Com efeito, a reformulação do plano visual do quadro que o Cubismo havia espoletado fora interrompido pelo deflagrar da I Grande Guerra Mundial, levando a uma espécie de adiamento das suas conclusões. Após o fim do conflito bélico, a herança cubista foi reivindicada por vários quadrantes e grupos de artistas, que aí viam a maior metáfora da guerra e de uma nova era que exigia uma espécie muito complexa de “regresso à ordem”. Dos futuristas italianos aos cubo-futuristas russos, das experiências órficas de Delaunay ao Purismo de Ozenfant e Corbusier, o domínio de uma prática pictórica herdeira da revolução cubista apresentava uma pluralidade formal e ideológica que parecia unida apenas por uma visão transformadora totalizante. Aliás, a ideia ou o conceito de “pintura pura” resultava nessa época de uma interpretação que considerava simultaneamente a pintura não-figurativa e a expressão de uma arte utopista que se pretendia nova e indissociável do novo século. O leque de figuras que assumiam a experiência da chamada “pintura pura”, a caminho do que ficaria definitivamente conhecido como “pintura abstracta”, unia Fernand Léger a F. Kupka, Giacomo Balla a Le Corbusier ou Delaunay, passando ainda pela defesa crítica de Guillaume Apollinaire, figura incontornável no contexto de afirmação da pintura moderna que viria a ser uma das vítimas da I Guerra Mundial.
Órfãos de uma prática moderna que se anunciara representante de uma nova era, artistas como Le Corbusier responderam à chamada de uma reinvenção da prática artística. Nesse contexto, o Purismo representou um dos mais ousados e ambiciosos projectos de reposicionamento da prática pictórica na confluência de outras disciplinas igualmente inspiradas pela ideia de transformação global da sociedade.
“Depois do Cubismo”, propunha-se então uma arte que assumisse a ciência como aliada essencial, estabelecendo assim uma plena identificação entre beleza e harmonia, na sujeição ao “número”, como concordância com a observação da natureza. Ozenfant e Corbusier defendiam que as leis “são construções humanas que coincidem com a ordem da natureza”, isto é, são uma condição de inteligibilidade do mundo. E esse entendimento do mundo é afinal uma necessidade intrinsecamente humana de perceber a ordem que sempre se manifestou entre o sensível da forma particular e a sua conceptualização universal. A ordem do mundo pode assim ser apreendida tanto no Partenon como na essencialidade das formas abstractas da arquitectura modernista. Por outro lado, a associação entre as leis da natureza e a espiritualidade humana levaram Corbusier a declarar que “a ciência e a grande arte têm o ideal comum de generalizar, o que é o fim mais elevado do espírito. Em acordo com as leis naturais, elas desprezam o acaso. A análise que está na base é apenas um meio para tomar conhecimento dos invariantes, para reunir materiais escolhidos segundo o diapasão humano; mas a análise que disseca e retalha degrada; dissecar é privar-se da visão de conjunto; a arte deve generalizar para alcançar a beleza.”[2] Por vezes, fica claro que o Purismo quis aproveitar o perspectivismo visual do Cubismo sem enveredar pela dissolução total das formas dos objectos representados, pois a perda da “forma una”, ou unificadora, é algo que contraria a manifestação natural da beleza e da harmonia que envolve e engrandece o ser humano. Contra o acaso, Corbusier praticará uma pintura de grande valor formal mas dominada pela ideia de ordem e comunhão com as grandes leis do cosmos. Nesta aproximação entre ciência (cientista) e arte (artista), defenderá: “Busquemos as leis da ordem, que são as da harmonia. Trata-se portanto de definir os grandes eixos de ordenação do mundo e de formulá-los; o cientista fá-lo-á com números e às vezes também com imagens (curvas); o artista, com formas. Os métodos são mesmos: indução, análise, concepção, reconstrução.”[3] Por isso, “uma arte que procede do conhecimento das leis é uma arte essencialmente humana, pura de todo o ocultismo, uma arte pura baseada na física.”[4] Purificar a arte dos subjectivismos espúrios é o grande objectivo de Corbusier e Ozenfant, procurando assim uma arte mais cientifica e de acordo com a ordem do homem novo, estruturado pelo funcionalismo, espécie de nova extensão do humanismo renascentista. No sentido do Purismo, a grande arte do passado, do presente e do futuro apresenta-se sempre na confirmação das leis da harmonia, a forma e a função ditadas pela assunção maior do “número”. A clareza de processos como de resultados é assim determinada pelo afastamento de qualquer forma de ambiguidade destabilizadora de uma fisiologia imutável. Essa imutabilidade do olho, da mente e do corpo, é na verdade uma resposta à forma, à linha e à cor que estrutura o processo de analogia estabelecido pelo Purismo. Deste modo, Corbusier defende uma estreita e aparentemente inevitável colaboração entre a ciência e a arte, pois “há solidariedade entre o perfeccionismo científico e o progresso da beleza: dando-nos luzes novas sobre a natureza, a ciência permite à arte progredir indicando para os nossos sentidos harmonia ignoradas, sensações ainda indiferentes, no limiar da beleza.”[5]
Para revelar essa beleza constante e estrutural, o tema pode afinal ser “humilde, pois uma garrafa de forma comum, banal para um indiferente, por exemplo, traz em si e por isso mesmo uma alta generalidade […] A generalidade é o que há de invariável na forma, o que é permanente, o que dura no tempo. Discernimos em cada objecto formas inerentes à sua constituição, caracterizando-os independentemente das condições secundárias que os modificam por um instante.”[6] Nesta medida, “a arte purista deve perceber, conservar e exprimir o invariante.”[7]
Sobre a relação estabelecida entre a forma e a cor, Ozenfant e Corbusier repercutem a sua admiração pelo classicismo de Nicolas Poussin quando afirmam: “a forma é preeminente, a cor tão-somente um dos seus acessórios. A cor depende totalmente da forma material: o conceito esfera, por exemplo, procede o conceito cor; concebemos uma cor independente de qualquer suporte. A cor é coordenada à forma e a recíproca não é verdadeira.”[8] Com efeito, no projecto purista “tudo pode ser representado por números; as proporções são as relações dos números que constituem um quadro. Um quadro é uma equação. Quanto mais justos são os elementos entre si, tanto mais o coeficiente de beleza tende a aumentar”. Por outro lado, “o quadro deve ser concentrado, integrado: ele é a integral dessa enorme equação que é a natureza. Isso é possível retendo-se do magma das sensações apenas o essencial, apenas o que se traduz em equivalentes de plástica pura. Compor: integrar. Em suma, o artista, depois de ter analisado como o cientista, vai mais longe na reconstrução. Ele exprime essa sensação absoluta que é a beleza.”[9] Ou, por outras palavras, Corbusier defende ainda, no seu perspectivismo de projectista e arquitecto, que “uma obra verdadeiramente purista deve vencer o acaso, canalizar a emoção; deve ser a imagem rigorosa de uma concepção rigorosa: por meio de uma concepção clara, puramente realizada, oferecer ‘factos’ à imaginação. O espírito moderno o exige; essa novidade para a nossa época restabelecerá a ligação com a época dos gregos. Uma arte assim está mais longe do Naturalismo que do próprio Cubismo; se ela parece mais clara, é uma prova de que está em ordem.”[10]
O grande projecto do Purismo é a determinação do invariante dos elementos, exprimindo a síntese possível da sua manifestação visual. “A razão na arte, assim como na ciência e na indústria, domina e ordena a obra. A sensibilidade, que é um subconsciente incontrolável ligado à personalidade, determina a emoção da obra. O esforço simultâneo da razão e da sensibilidade realiza a ‘concepção’.”[11] Um dos insuspeitos contributos do Purismo para a arte contemporânea reside no acento primeiro sobre a conceptualização do trabalho artístico. Apesar disso, “o Purismo não se pretende uma arte científica, o que não faria nenhum sentido”. A obra não deve ser, no entanto, “acidental, excepcional, impressionista, inorgânica, protestativa, pitoresca, mas ao contrário, geral, estática, expressiva do invariante.” No fundo, “o Purismo quer conceber claramente, executar lealmente, exactamente, sem perdas; desvia-se das concepções obscuras, das execuções sumárias, rudes. Uma arte grave deve banir toda a técnica que engane sobre o valor real da concepção. A arte está antes de tudo na concepção”. Por isso, “o Purismo teme o bizarro e o original. Busca o elemento puro para reconstruir quadros organizados que pareçam ser feitos pela própria natureza. A prática deve ser segura o suficiente para não entravar a concepção.”[12]
Entre a busca do invariante da natureza e da beleza, o projecto da arquitectura e a expressão objectiva da prática da pintura, Le Corbusier defendeu uma arte controlada pela harmonia e a conceptualização da visualidade pictórica, desenvolvendo uma experiência utópica de realização plástica que deveria obedecer essencialmente à integralidade da manifestação arquitectónica. Também por essa razão, o Purismo não teve junto do meio artístico a repercussão que chegou a ambicionar. Apesar disso, e se observarmos apenas o valor estético-formal da pintura e dos desenhos puristas, compreendemos facilmente uma espécie de qualidade intrínseca a que faltará no entanto algo de relevante e menos identificável: há quem não hesite e lhe chame alma.
[versão original: in Arq.a – Revista de Arquitectura e Arte, nº 59/60, julho/agosto, 2008]
1 | ↑ | Ozenfant e Jeanneret [Le Corbusier], Depois do Cubismo, (1918), (trad. português do Brasil de Célia Euvaldo), São Paulo, Cosacnaify, p. 73. |
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2 | ↑ | Ibidem., p. 55. |
3 | ↑ | Ibidem., p. 59. |
4 | ↑ | Ibidem., p. 63. |
5 | ↑ | Ibidem., p. 69. |
6 | ↑ | Ibidem., pp. 74-75. |
7 | ↑ | Ibidem., p. 75. |
8 | ↑ | Ibidem. |
9 | ↑ | Ibidem., p. 76. |
10 | ↑ | Ibidem., pp. 77-78. |
11 | ↑ | Ibidem., p. 80. |
12 | ↑ | Ibidem., p. 81. |