1999 UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A «CIÊNCIA DA ARTE» Joaquim Rodrigo

UMA CONTRIBUIÇÃO PARA A «CIÊNCIA DA ARTE»

 

Obviamente, considero a solução encontrada como válida e original.

Por isso, julgo que através do sistema indicado será possível

ensinar e aprender pintura em termos universais.

 

Joaquim Rodrigo

 

 

Para lá da inauguração do novo Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS), a grande retrospectiva de Joaquim Rodrigo, promovida pelo Museu do Chiado, constitui o grande acontecimento artístico deste ano, no que às artes visuais diz respeito. O nível de investigação liderado e desenvolvido por Pedro Lapa e María Jesús Ávila conduz a obra de Rodrigo a uma nova e mais profunda leitura sobre a sua importância no contexto nacional, estabelecendo inclusive pontes de contacto com um hipotético lugar internacional[1]. Apesar do consenso reinante nas várias gerações de críticos e historiadores de arte, jamais o trabalho de Joaquim Rodrigo beneficiou de uma abordagem tão abrangente, distanciada e rigorosa. O que resulta imediato após a leitura e compreensão dois ensaios reunidos no catálogo raisonée que acompanha a exposição é a clara defesa de uma tese que sustenta não só a coerência absoluta da obra de Joaquim Rodrigo, como a necessidade premente do seu reenquadramento qualificativo. Se José-Augusto França continua a ser o maior defensor da obra de Rodrigo, tendo pontuado inteligentemente e no tempo certo as razões essenciais da sua qualidade, a análise agora apresentada por Pedro Lapa, no seu ensaio Tempo e inscrição, ultrapassa em muito o que até aqui tem sido dito e escrito sobre o artista português.

 

Pela investigação de uma nova pintura abstracta

 

Desde logo, Pedro Lapa sublinha na pintura de Joaquim Rodrigo da década de 50 – e apesar do seu processo de aprendizagem autodidacta – uma absoluta radicalização de alguns dos pressupostos essenciais de um modernismo que em Portugal teve rara expressão. Produzido a partir de um pessoalíssimo “projecto cognitivo”, Rodrigo estabeleceu um sistema interno de prática pictórica bastante complexo e idiossincrático. Descoberta a pintura modernista das vanguardas históricas como uma linguagem desenvolvida segundo um particular sistema semiológico, Rodrigo vai aliar então e para sempre as suas duas grandes fontes de informação: a ciência e a arte[2]. Aliás, será no diálogo constante deste binómio que a sua pintura evoluirá para uma racionalidade impossível de compreender por um Portugal fechado às rupturas estéticas da primeira metade do século. O essencialismo fundador que percorreu as vanguardas artísticas está presente desde cedo no projecto artístico de Joaquim Rodrigo, fazendo do seu caso um exemplo único no contexto português. A incansável procura de um método específico de pintura – situação inédita até hoje em Portugal – conduziria o autor a um isolamento crescente, abdicando conscientemente dos favores da linha oficial e académica do regime do Estado Novo. É certo que se pode questionar o domínio técnico de Rodrigo no que diz respeito ao desenho clássico e verista, ou invocar os seus desentendimentos com o ensino academizado da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) com vista a justificar a sua aproximação à pintura abstracta do segundo pós-guerra. Contudo, se reduzirmos a importância desses motivos ao que eles, de facto, significam no quadro de uma criatividade moderna que está para além desses requisitos, percebemos a adaptação lógica e natural de Rodrigo ao registo revisionista desse abstraccionismo geométrico que nos anos 50 se discutia em Paris pelos Salons des Réalités Nouvelles, ou na revista Art d’Aujourd’hui – que o artista português coleccionava e sublinhava entusiasticamente. É compreensível que a Abstracção tenha funcionado então como jargão fundamental da investigação de Rodrigo. Era um processo de composição pictórica que unia perfeitamente as bases de uma conceptualidade formal autónoma (tal como era então defendida por Jean Dewasne, Auguste Herbin ou Victor Vasarely, na herança dos grupos Cercle et Carré e Abstraction Création dos anos 30) e a possibilidade de levar até às últimas consequências o carácter de investigação inerente à obstinada personalidade de Joaquim Rodrigo. Entender a abstracção geométrica não já como uma transcendentalização metafísica, como em Kandinsky ou, de outro modo, em Mondrian, mas antes enquanto novo e radical conceito operatório, partindo da ideia de uma mudança de paradigma essencial na história da arte, era afinal o desígnio que alimentava o seu projecto criativo. No início dos anos 50, a pintura abstracta praticada na Europa fazia parte de um desenvolvimento que procurava nos elementos constitutivos da pintura uma abordagem capaz de criar uma autonomia absoluta, constituindo sobretudo uma linguagem intrinsecamente descoberta na própria pintura, em herança ainda do investimento Construtivista do início do século. O quadro passa a ser entendido como espaço de investigação perceptiva, jogado a partir de uma arquitectura de composição diversa, buscando sempre a essencialidade bidimensional da tela, e recorrendo para isso a fortes contrastes formais ou lumínicos, em oposições constantes estabelecidas entre linhas, formas orgânicas e cores complementares. Este projecto quase científico de abstracção vai assim determinar a produção pictórica de Rodrigo durante toda a década de 50. Na série de composições a óleo C1 a C10, são patentes as variações formais e cromáticas alimentadas neste contexto de informação. Entre organizações que favorecem uma leitura de composição consubstanciada na definição dos limites do quadro (C3, C4 e sobretudo em C9) e o desenvolvimento de formas de fusão quase orgânica (C6 e C7), Joaquim Rodrigo leva longe o seu esforço de compreensão sobre a essência da pintura abstracto-geométrica. Por outro lado, no caso fundamental do conjunto de pinturas associadas normalmente à pesquisa pioneira do holandês Piet Mondrian, Joaquim Rodrigo procede a uma releitura (no catálogo associada a um espírito quase neovanguardista de interpretação crítica sobre as vanguardas históricas) dos problemas formais então aflorados, mas invertidos aqui no seu propósito neoplatónico original. De facto, Rodrigo contrapõe à linguagem formal de Mondrian uma dimensão tão somente matemática de composição, justificando que a proposta desse modernista do início do século não poderia ter outra consequência para além da sua organização racional e científica, desmistificando assim toda a carga humanista inicial. O que Rodrigo vê nestas pinturas é, antes de mais, uma resolução lógica e conceptual da problemática perceptiva inerente ao formalismo abstracto. Para ele não há outro caminho a seguir. Em Portugal, embora num contexto de recepção muito restrito, a prática da abstracção geométrica ganha alguma visibilidade nesses anos, com a apresentação em 1953, na Galeria de Março, então dirigida por José-Augusto França, de um conjunto de trabalhos de Edgard Pillet, revelando-se desde logo uma incompreensão generalizada, do público à crítica, relativamente aos valores e à história da pintura abstracta. Apesar das conferências sobre o tema promovidas nesse espaço de exposição, o labor de Fernando Lanhas, Nadir Afonso, Fernando Azevedo ou Joaquim Rodrigo não alcançaria repercussão de maior. Desses, só Rodrigo não abandonou a ideia de uma prática artística alicerçada num sistema coerente e universal. Daí para a frente, a passagem do primado da forma para o da cor conduzirá à assunção de uma nova necessidade: o tempo, enquanto reinvenção sígnica de uma memória essencial, afirmando, em processo interno, a passagem a uma nova-figuração que chama até si também outros valores cromáticos e de conteúdo, atentos sobretudo a um novo e conturbado contexto histórico-social.

 

Uma nova figuração ou o “complementarismo em pintura”

 

Os anos 60 constituem para Joaquim Rodrigo uma transição processual extraordinária, optando primeiro por uma preocupação crescente sobre a importância da cor na composição do quadro e, depois, pela criação de um vocabulário simbólico orientador de uma prática pictórica onde a consciência política e social convoca progressivamente crípticos signos figurais e verbais, resultando ainda de uma complexa associação aos  valores da abstracção, como em 1960, e S.A.-Estação, de 1960 e 1961 respectivamente. Nesta última, a referência quase explícita à repressão policial sobre a entusiasta recepção da campanha de Humberto Delgado em Santa Apolónia (1958) promove uma identificação significante que não abandona, contudo, a organização abstracta do plano do quadro. A partir daí a sua pintura passa a ser realizada também com recurso a pigmentos naturais retirados das terras do Parque de Monsanto, e formas de teor mais orgânico ganham posição de destaque numa estruturação que mantém essencial o sentido teórico-formal do quadro. Oriundos da cultura popular e quotidiana (Pop? ou ingenuamente abordando uma “narração de fait-divers do seu país”, como defendeu José-Augusto França?), da memória de muitas viagens, ou de uma atenção a acontecimentos políticos como o famoso e mediático “assalto ao Santa Maria”, as chacinas no Norte de Angola, o início da guerra colonial, ou o assassinato de Lumumba, surgem signos mínimos de uma denúncia que se inscreve sempre como lógica prática de pintura. Por outro lado, a leitura nesses anos do livro do antropólogo José Redinha, Paredes Pintadas da Lunda (1953), exerce sobre Joaquim Rodrigo um fascínio que aproxima decisivamente a sua pintura dessa tradição narrativa não influenciada pelo mundo ocidental, tendo também nos aborigenes da Oceânia e nas culturas pré-colomobianas uma referência maior. Os tons ocres aí sugeridos, ou os contornos desses signos imagéticos confirmam o desejo de uma nova figuração, ingénua, simples, quase alfabética. Sintetizadas, essas figuras organizam-se a par de legendas, palavras e manchas reduzidas a uma paleta estanque de cores terra. Todavia, esses referentes recebem sempre uma distribuição compositiva quase matemática e funcional, desenvolvendo estranhas e complexas associações visuais retidas e maturadas pela memória. Joaquim Rodrigo inicia aí aquilo que viria a designar mais tarde como a teoria do “Complementarismo em pintura” essa laboriosa “contribuição para a ciência da arte” redigida entre 1976 e 1982. Na defesa dessa teoria de carácter universalista, Rodrigo persiste até ao fim da sua vida no desenvolvimento de uma linguagem muito particular e pretensamente capaz de poder transformar qualquer pessoa num pintor. Se Joseph Beuys, determinado por uma perspectiva política e transformadora de raiz romântica, preconizava nos anos 70 que “todo o Homem pode ser artista”, Joaquim Rodrigo, orientado por uma ilusão modernista mais racional, acreditava sobretudo na coerência de um método que ensinasse a pintar todos aqueles que aceitassem o desafio. Nisso, ele foi talvez o mais moderno, capaz e consequente dos artistas portugueses deste século XX.

 

[versão original: in Arte Ibérica,  nº 29, novembro de 1999]

 

[imagem: Joaquim Rodrigo, Lisboa – Oropeza, 1969, Coleção Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado]

References
1 Cf. Pedro Lapa e María Jesús Ávila, Joaquim Rodrigo – Catálogo Raisonné, Lisboa, Museu do Chiado – IPM, 1999.
2 Não podemos esquecer que Joaquim Rodrigo era Engenheiro Agrónomo, tendo inclusive trabalhado nos anos 40 com o arquitecto Keil do Amaral no projecto de arquitectura e florestação do parque de Monsanto, em Lisboa. Essa formação científica determinará fortemente a sua investigação artística ao longo de toda a  vida.