2021 Uma poética do combate Luísa Ferreira

Uma poética do combate

 

O que as fotografias tornam imediatamente acessível não é a realidade, são as imagens.
Susan Sontag

 

Impiedoso, um novo coronavírus ataca o mundo. A humanidade reage, hesitante e confusa, sem prever ainda a extensão dos efeitos da pandemia. A reação no planeta é desigual, mas a esperança no combate ao vírus a todos mobiliza na vontade de agir para ultrapassar a maior crise do início do século XXI e, muito provavelmente, das nossas próprias vidas. Sobre o vírus, sabemos pouco, sobretudo aqueles que não são epidemiologistas, médicos ou cientistas. Nós, os que não entendemos o que significa o vírus no seu alcance de saúde pública, sabemos apenas, em humilde modo existencial, que tivemos uma vida antes dele, e uma outra teremos, estamos em crer, após a sua erradicação. A tarefa une a política e a ciência, gerações e classes sociais. De uma forma mais ou menos consciente, homens e mulheres, velhos, jovens e crianças lutam todos os dias para que a Covid-19 se converta numa memória, apesar de dolorosa, finalmente superada.
Neste contexto marcado pelo estranhamento, a incredulidade e a resiliência, terá a arte algo a dizer sobre o drama que nos acompanha desde o final de 2019? Acredito que sim, haverá sempre um caminho entre a realidade e a sua sensibilidade transfigurada que só a perspetiva de um artista pode ajudar a definir, e com isso uma outra forma de auxílio se desenha, frente aos nossos olhos. A estética e o real, a arte e o documento constituem, desde a sua origem, os valores essenciais ou a peculiaridade da prática da fotografia, essa arte do testemunho humano, de matriz química e mecânica, que tanto nos propõe o belo com que apreciamos os sentidos da vida como a dureza de tudo aquilo que podemos, mas nem sempre queremos ou conseguimos ver. Resultado de maior ou menor coragem e atenção sobre o real, uma fotografia é sempre um diálogo de comunicação, de olhar a olhar, uma hipótese de libertação de ideias, de momentos registados enquanto transformação entre seres humanos com passagem por este mundo. Em certa medida, a fotografia é uma espécie de vírus positivo, mas omnipresente, que a todos diz respeito, e ao qual nos liga um sentimento de união e partilha entre gerações.
Hans Belting identificou a essência da imagem fotográfica como «o olhar que lançamos sobre o mundo». Atributo reconhecível como exercício autónomo e ontológico que enreda, exibe e esconde ao mesmo tempo uma energia implícita, suspensa ou estabelecida, entre sujeitos. Como defende o historiador de arte alemão, «é praticamente impossível não ver na fotografia o meio de um olhar que se fixa numa imagem, e certamente de um outro olhar que se transfere para o nosso, quando estamos perante a imagem final. A percepção simbólica diante de uma fotografia procede de uma troca de olhares. Recordamos o olhar de que a fotografia constitui a recordação. Neste sentido, a fotografia é um meio entre dois olhares. Aqui, um papel importante é desempenhado pelo tempo que existe entre o olhar registado e o olhar reconhecedor. Vemos o mundo com o olhar de outro, mas confiamos que ele poderia ser também o nosso. O mesmo mundo parece diferente, porque foi visto num tempo diferente. Olhamos para o mundo através de uma imagem que não parece inventada, mas que confere uma duração ao olhar com que também nós experimentamos o mundo.»[1] Ainda que a imagem fotográfica resulte do acaso ou de uma não intenção, o «olhar» nela revelado, na origem mecânico, ganha apenas definição visual ou projeção como «olhar sobre o mundo» quando o «olhar» do observador com ele se encontra, confirmando desse modo a sua essência de imagem emoldurada do real, como resultado de um «olhar» a posteriori definido. E nesse caminho ambivalente e intermediado, entre o olhar intencional de quem fotografa e a fotografia casual significada pelo observador determinado, construímos a nossa existência como uma torre de imagens que, apesar de todas as autorias (familiares ou distantes), nos pertencem de uma forma quase absoluta. Assim, e recorrendo uma vez mais à reflexão de Belting: «A fotografia transforma o mundo num arquivo de imagens. Corremos atrás dele como de um fantasma e, no entanto, possuímo-lo só nas imagens a que ele desde sempre se esquivou. Também as imagens fotográficas persistem como relembranças mudas do nosso olhar efémero e passageiro. Animamo-las só quando recorremos às nossas próprias memórias. O olhar de dois espectadores que têm diante de si a mesma imagem separa-se onde a memória os separa. O olhar rememorante do espectador atual é diferente do olhar recordado, que levou à fotografia e nela se reificou. Mas a aura de um tempo irrepetível, que deixou o seu vestígio na fotografia irrepetível, leva a uma animação de tipo muito pessoal, que pressupõe no espectador uma empatia afetiva.»[2] Por isso, independentemente da variabilidade dos seus protagonistas, da ligação da imagem à sua recetividade, verifica-se na fotografia uma possibilidade recorrente de transferência dos afetos, de comunhão cognitiva e sensorial em torno dessa imagem do real enquadrada e perpetuada, de algum modo, entre todos os que com ela se cruzarem. O que aí se apresenta é o resultado, segundo Roland Barthes, de uma extraordinária «máquina de significados»[3], mais do que a consequência de uma maquinação especular do real.
Na verdade, e apesar da sua motivação específica – uma encomenda para acompanhar diversas etapas da luta contra a pandemia – as imagens produzidas por Luísa Ferreira constituem, individualmente e no seu conjunto, uma série de ampla significação, espécie de máquina de leitura sobre esse real que, manietado pela ação do vírus que nos reduz ao confinamento ou à limitação da nossa liberdade, apresenta sempre uma riqueza suplementar e inesperada, sustentada não apenas na consciencialização visual de uma atmosfera identificada e concreta, como na surpresa dos acasos que só o momento fixado pela câmara fotográfica pode desencadear, pois apesar da intenção objetiva do disparo da artista, o real revela sempre pormenores que estão para lá de qualquer exercício de intencionalidade ou controle imagético, como podemos reconhecer, ao longo desta série de imagens, nos múltiplos reflexos das superfícies vidradas que separam os diferentes espaços dos laboratórios visitados, ou nas deformações inusitadas que as viseiras sempre projetam, ou ainda nas inesperadas expressões do informe dessa porta de congelador aberta ou escancarada na imagem que lhe empresta todo o protagonismo quando alguém se prepara para guardar amostras de análises. Em certa medida, a «empatia afetiva»[4] espoletada pela imagem da fotografia pode assim possuir uma origem (a do próprio real) em parte menos determinada pela autoria do que à partida seria esperado, embora tenhamos de reconhecer também, de modo quase paradoxal, que o «afeto» transmitido pela significação da fotografia realiza ao mesmo tempo um nível de comunicação que não dispensa, em circunstância alguma, a identidade autoral de quem a produziu, pois sem essa primeira expressão de subjetividade não teríamos nunca o ensejo de estabelecer uma interpretação, uma sincronia de olhares responsável pela empatia, emocional e racional, por ela proporcionada. Nessa medida, as fotografias agora reunidas por Luísa Ferreira, enquanto seleção de um conjunto maior centrado nas ações científicas desencadeadas para contrariar os efeitos do vírus no nosso país, representam um forte testemunho desse trabalho conjunto, alimentado pelos sinais dos seus diversos intérpretes no terreno, desde os políticos aos cientistas, dos médicos aos enfermeiros e voluntários, ou dos industriais e designers aos operários produtores de máscaras e outros materiais de proteção. Mas perante a urgência dos movimentos de auxílio, a coordenação do trabalho em laboratório, as aulas, as reuniões de estudo e a reorientação dos programas da indústria têxtil, a matriz estética das imagens que a artista nos apresenta não deixou nunca de determinar o essencial da decisão fotográfica. Entre o valor histórico e testemunhal das imagens e a sua natureza idiossincrática enquanto expressão do real, observamos aqui o valor do alcance de um trabalho que, apesar de alicerçado na atenção aos profissionais que contribuem para fazer face ao vírus, em muito ultrapassa o registo documental do seu primeiro propósito, oferecendo uma força de sugestão e um peso interpretativo que contrariam o ceticismo de Baudelaire face a fatura industrial dos primórdios da fotografia e a sua rude ameaça à grande «arte»[5].
Intitulada A ciência cura: o conhecimento no combate ao COVID19 em Portugal (Março-Maio 2020), esta série fotográfica permite-nos observar e sentir desde logo que, mesmo em situações limite, o ser humano é capaz de construir significados de grande expressão humanitária, dos quais o espírito de solidariedade entre os diversos sectores de uma sociedade sustentada na crença e evolução do conhecimento científico representa uma sólida confirmação da nossa condição coletiva e dos seus valores universais, em especial salvar vidas e, desse modo, garantir a sobrevivência da espécie humana, fortalecendo afinal os laços que nos unem para lá das ideologias, dos credos e de outras limitações contruídas ao longo dos tempos na separação dos seres humanos. Porém, essa mensagem não resulta apenas do tema que estrutura o conjunto das imagens, mas do modo como se organiza no olhar de quem o fotografa. A luz, a sombra, as linhas, as formas ou as cores que se descobrem a cada imagem constituem afinal o contributo principal de complementaridade ao sentido testemunhal que também as define a partir do exercício de rememoração inerente à experiência fotográfica. Entre o significado expectável e a suspensão das suas convenções, estas imagens respondem ao desafio de projetar outras sugestões de leitura sobre o que nos é dado a ver, construindo uma nova significação em torno desses procedimentos que associamos facilmente, pela sua amplitude mediática quotidiana, ao combate do coronavírus. Aliás, a presença esmagadora e quase esgotante nos últimos meses dessa iconografia de laboratórios, máscaras, batas, luvas, pipetas, seringas ou tubos de colheita, é enfrentada com mestria por Luísa Ferreira, nela encontrando o antídoto para a redimensionar a uma escala estética e formal. Sem evitar a sua omnipresença, a qual tenderemos cada vez mais a rejeitar ou evitar, a artista reordena a partir do seu olhar uma metaforização implícita nesses referentes que julgamos vazios ou alheios a uma qualquer espécie de poética potencial. O que estas imagens nos concedem é a possibilidade de nelas descobrirmos a metáfora da humanidade concentrada num projeto comum, presente afinal nos gestos habituais de uma videoconferência, de uma visita governamental ou da prática de investigação em laboratório. Na naturalidade dessas ações ou nos recursos formais da sua objetividade, Luísa Ferreira encontra porém um ritmo de especificidade imagética, uma solenidade de simetrias e contrastes de luz que nos parece por vezes resultado de uma qualquer encenação, mas que apenas é determinada pela subtileza da elaboração visual da fotógrafa, das suas opções de recorte estético e cesura temporal.
Ao abordar uma aproximação fotográfica àqueles que produzem diariamente testes de diagnósticos com nano partículas de ouro, operações de colheita de amostras para a realização de testes virais, assim como a sua articulação com operações de rastreio serológico, produção de kits de colheita de amostras de teste laboratorial, montagem de zaragatoas, concentração para centrifugação, preparação do material para análise em câmaras de fluxo, extração de material genético do vírus, ou ao visitar várias instituições científicas que estão a desenvolver e a realizar testes de despistagem do vírus, a artista reinterpreta todo um ambiente marcado por instrumentos de trabalho e controlo científico, uma atmosfera de ação humana em contexto pandémico, de perigo iminente para a saúde pública, o que nos remete de imediato para uma imagética cinematográfica de filmes e séries de ficção científica onde nos últimos anos se têm antecipado cenários de desespero e reação em tudo semelhantes ao momento atual. Mas Luísa Ferreira jamais explora qualquer espécie de sensacionalismo associado ao tema e às suas incertezas, antes lhe interessa uma esperança serena que adivinha na organização das instituições e das pessoas que as representam e nas quais encontra a expressão do empenho e do compromisso que determina o combate da ciência à pandemia. Apesar disso, a expressão artística maior destas imagens pode ser identificada em diálogo com referentes ancestrais ou linhas de interpretação que convocam a história da arte, como no retrato de reminiscência renascentista desse voluntário que olha de frente, confiante do seu exercício e contributo, a câmara fotográfica; assim como nessa imagem exterior onde de modo aparente apenas observamos, em ambiente noturno, um conjunto de cercas divisórias e fitas da proteção civil a separar uma espécie de linha de fronteira entre zonas de proibição à circulação de pessoas, mas que, perante a ausência humana e a envolvente natural da presença de árvores, parece sobretudo demarcar, de um modo imaginário e misterioso (associável ao sublime e ao romantismo), as possibilidades de circulação do próprio vírus; ou ainda, no seguimento dessa leitura, como podemos interpretar, na imagem que mostra a arquitetura de um laboratório universitário ladeado por um jardim cuidado, uma linha de clara divisão entre a ação humana e a natureza, no hipotético domínio da ciência sobre o cosmo – inversão deliberada da paisagem panteísta. E como não ver a expressão espiritual e quase religiosa desse gesto humano a elevar uma viseira entre viseiras, como se de uma transubstanciação se tratasse?
Por isso, construir uma imagem a partir do real, não significa para Luísa Ferreira a perspetivação transparente desse mesmo real, mas o efeito de uma elaboração que, na hora de fotografar uma pessoa, uma ação ou um objeto, se transforma num aglutinador de significados, resultado de uma transtemporalidade auxiliada pelo seu olhar, confirmada em cada momento de fixação imagética. Por outro lado, a empatia e o rigor do seu testemunho apontam uma ordem do sensível onde a imagem virtuosa resgata este horizonte temático à sua dimensão de atualidade, transportando-o a uma expressão intemporal que a projeta à polissemia do indefinível, aprofundada na imagem artística. Inesgotável e multiforme no modo como um nexo conceptual provisório se converte numa experiência ao mesmo tempo estética e documental, estas são imagens convergentes, traduzidas como metáfora (analogia) de uma esperança coletiva, e divergentes, enquanto metonímia (vestígio) desse real surpreendente e não linear, ancorado nos gestos científicos. Neste sentido, as fotografias de Luísa Ferreira veiculam uma sensibilidade atenta ao pathos da humanidade, que desvela um movimento, uma série de instantâneos captados sem retificação ou hierarquia metodológica, perscrutados apenas por entre as fissuras do real. Trata-se de uma constelação de imagens que, apesar da sua propensa objetividade, não deixam de se refugiar na ideia de fragmento (todas as fotografias o são, em parte), espécie de visões parcelares e autónomas em termos formais relativamente à sua motivação temática original. Como perceções dinâmicas e variáveis, animadas em torno de uma atenção particular a esse teatro de operações comandado pela determinação de uma luta sem tréguas, as imagens desta série sancionam, apesar das contingências e da urgência da sua realização, uma ideia de visualidade poética e semântica, em parte subsumível ao universo da ciência, mas de uma ciência humanizada na fusão estética e transcendental com os seus instrumentos e objetos específicos, como nessa imagem de um braço humano que, ao ser esticado para acender uma luz, parece assumir-se como extensão natural do complexo maquínico e laboratorial que ocupa o plano central da fotografia.
Se a ciência é, a cada dia, sinónimo de crença na cura da enfermidade que avassala o mundo, a arte é visionária e desconcertante no modo como interfere ou contribui para essa imagem, dado que coloca no plano do imaginário os sintomas de uma aliança mágica entre o real e a sua suspensão. Tal como escreveu Susan Sontag: «a câmara atomiza a realidade, torna-a manuseável e opaca. É uma visão do mundo que nega a inter-relação, a continuidade, mas que confere a cada momento as características de um mistério.»[6] A troca de sentidos, afetos e significados que uma fotografia pode harmonizar entre duas pessoas constitui assim uma imagem simbólica do intercâmbio existente entre a ciência que luta agora para dominar o vírus e a arte que procura criar a memória dessa realidade histórica, a sua posteridade sensível mas complexa. Deste modo, ao enfatizar qualidades e disfunções não disponíveis em outros meios, a arte permite criar dinâmicas de perceção do real que questionam as imagens estereotipadas que nos rodeiam, impondo um dispositivo de reflexão que as inverte e radicaliza a partir das suas contradições, para as renomear por fim enquanto possibilidade de aprofundamento sobre a experiência da vida. O que a série fotográfica de Luísa Ferreira reitera é precisamente esse aspeto de fascinação transversal a qualquer verdadeira prática artística. E se, como nos avisa Marie-José Mondzain, «o invisível, na imagem, é da ordem da palavra»[7], a fotografia parece alertar-nos, desde a sua origem, para a soberania da ilusão expressa pelo real nas suas imagens. A contingência desse exercício, para usar, pela última vez, uma reflexão de Hans Belting, é que «a diferença entre imagem e realidade, na qual reside o enigma de uma ausência tornada visível, regressa à fotografia sob a forma da distância temporal em que se apresenta post factum aos nossos olhos.»[8]

 

[versão original: in AAVV, A ciência cura, FCT-Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, IN-CM, 2021]

 

[fotografia: Luísa Ferreira, (da série) A ciência cura, 2020]

 

References
1 Hans Belting, Antropologia da Imagem — Para uma Ciência da Imagem, (2002) (trad. port. de Artur Morão), Lisboa, KKYM + EAUM, col. IMAGO, 2014, p. 279.
2 Idem, p. 273.
3 Cf. Roland Barthes, A Câmara Clara, (1980), (trad. port. de Manuela Torres), Lisboa, Edições 70, 1998.
4 Hans Belting, op cit., p. 273.
5 Cf. Charles Baudelaire, “Le public moderne et la photographie”, (1859), in A Invenção da Modernidade (Sobre Arte, Literatura e Música), (tradução e notas de Pedro Tamen), Lisboa, Relógio d’Água, 2006, pp. 152-157.
6 Susan Sontag, Ensaios sobre Fotografia, (1973), (trad. port. de José Afonso Furtado), Lisboa, Quetzal, 2012, p. 31.
7 Cf. Marie-José Mondzain, L’Image peut-elle tuer?, Paris, Bayard, Coll. «Le temps d’une question», 2002.
8 Hans Belting, op. cit., p. 273.