2005 voar mais alto Martin Scorsese

voar mais alto

 

Martin Scorsese tem afirmado incessantemente (de um modo pouco convincente, diga-se) que “O Aviador” terá sido a sua última incursão no modelo de produção e realização de Hollywood. Parece que a paciência se esgotou, ainda que o profícuo realizador, autor de filmes como “Os Cavaleiros do Asfalto” (1973), “Taxi Driver” (1976), “O Touro Enraivecido” (1980), “A Última Tentação de Cristo” (1988), “Tudo Bons Rapazes” (1990) “A Idade da Inocência” (1993), “Casino” (1995), “Kundun” (1997) ou “Gangs de Nova Iorque” (2002), venha agora dar à Academia a derradeira oportunidade de o oscarizar retroactivamente.

Esta parece ser uma espécie de birra de despedida, como se os erros do passado – é de facto inadmissível que Scorsese não tenha ganho até hoje uma única estatueta dourada – pudessem ser compensados por “chantagem” emocional. Quase que aposto que este mediano “O Aviador” trará a Scorsese a glória mais desejada e merecida, sobretudo pelos seus dois primeiros grandes filmes: “Táxi Driver” e “O Touro Enraivecido”.

O regime conservador de Hollywood tem por hábito atribuir compensações que, na maior parte dos casos, se resumem a prémios de carreira e que têm por objectivo colmatar injustiças passadas, mas o caso presente é menos subtil ainda, pois desta vez tudo foi feito para que Scorsese levasse para casa um cesto cheio de estatuetas. Com uma produção gigantesca, um épico de características “biopic” em torno do excêntrico e multimilionário Howard Hughes, uma apelativa história de louca aventura que enaltece o “amarican dream”, e uma extraordinária reconstituição do “glamour” hollywoodiano dos anos 30 e 40, Martin Scorsese realizou na verdade um cocktail imbatível para agradar ao júri de Hollywood. Terá portanto, ao que tudo indica, a sua noite de glória, para depois se dedicar a projectos mais ousados do ponto de vista artístico. Assim seja, pois o convencionalismo de “O Aviador” – que promete ser êxito de bilheteira, um pouco por todo o mundo – não merece as loas unânimes que se preveem na noite dos Óscares.

Na sua exacta medida, este é um filme de competentíssima realização, no qual Scorsese nos ensina, de uma vez por todas, como se deve filmar aviões, bem comos os corpos que neles voam, numa estética envolvente, sobretudo ao nível da montagem e da sua espectacularidade imagética. Todavia, nem as boas interpretações de DiCaprio – que encarna essa figura incrivelmente inesgotável (do cinema à aviação) que é Howard Hughes – e Cate Blanchett – numa interessante leitura da imagem esfuziante de Katharine Hepburn – parecem poder disfarçar um terrível efeito “déjà vu” neste “forcing” final de Scorsese em torno das tão almejadas estatuetas douradas. É tudo tão “perfeito”, aprumado e certinho, que percebemos desde logo tratar-se de um exercício virtuoso – ao mais alto nível, é certo – mas sem a chama visionária e perene dos grandes momentos de cinema. Restam alguns quadros de magnífico deleite visual sobre esses “early days”, em momentos de entusiasmo e riqueza formal, como que só Martin Scorsese consegue apresentar. Pena é que a solidez narrativa e mesmo a espessura dos personagens não estejam ao mesmo nível do brilho e da intensidade dos holofotes que iluminam todas estas estrelas do passado. O voo de Hughes, livre e absoluto no fito de mais um “record”, parece desenhar a metáfora desse enorme e obsessivo desejo de Scorsese em tocar o céu, ou seja, a glória de Hollywood.

 

“O Aviador/The Aviator” (EUA/Japão/Alemanha, 2004) ***
Realização: Martin Scorsese

Actores principais: Leonardo DiCaprio, Cate Blanchett,

John C. Reilly e Jude Law

 

(in Vida Ribatejana, 9-2-2005)