2006 Amadeo e a vanguarda Amadeo de Souza-Cardoso

Amadeo e a vanguarda

 

O registo de vanguarda que informa a curta produção (1907-1918) de Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918) é ainda hoje uma espécie de oásis modernista na história da arte portuguesa do século XX. A originalidade do mais vanguardista dos artistas portugueses da primeira metade do século passado é uma realidade incontornável que a mostra “Diálogos de Vanguarda”, a grande exposição comissariada por Helena de Freitas para a Fundação Calouste Gulbenkian (CAM), vem agora ampliar de um modo considerável. As novas pistas de investigação desenvolvidas a partir da revelação de um conjunto significativo de obras quase desconhecidas do grande público constituem, na verdade, uma das mais valias desta mostra comemorativa dos cem anos sobre a partida de Amadeo para Paris, a capital da vanguarda artística.

Para além da presença de um núcleo bastante qualificado de obras de alguns dos artistas das vanguardas históricas relacionáveis com Amadeo ao nível de afinidades estilísticas ou experimentais mais ou menos evidentes – desde os mais próximos Modigliani, Brancusi ou o casal Delaunay, aos cubistas Gris, Gleizes, Metzinger ou Archipenko, passando pelos expressionistas Macke, Feininger ou Kokoschka, e ainda pelos russos Malevich, Taltlin, Klioune, Puni, Exter, Popova ou Gontcharova – “Diálogos de Vanguarda” apresenta-nos três importantes quadros do artista português, datados de 1912 e comprados por coleccionadores americanos durante o “Armory Show” (1913), que nunca haviam sido vistos em Portugal, constituindo assim o maior atractivo da presente exposição. Com efeito, as obras “Chateau Fort (Fortaleza)” do Art Institute of Chicago, “Return from the Chasse (Regresso da Caça)” do Museu de Michigan, e “Avant la Corrida (Antes da Corrida)” – descoberta recentemente pela equipa de investigadores liderada por Helena de Freitas e adquirida pelo Centro de Arte Moderna da F.C.G. – contribuem decisivamente, sobretudo as duas últimas, para uma reavaliação do trabalho de Amadeo de Souza Cardoso, dado que a sensibilidade modernista aí observada, convergindo entre o tardo-simbolismo e algum expressionismo centro-europeu, reforça a ideia de que a primeira fase desta obra, avessa no entanto a qualquer catalogação mais ortodoxa, é afinal a mais decisiva no sentido de uma originalidade muito pessoal que faz aliás de Amadeo não apenas um artista influenciado pelos seus compagnons de route, como ainda um precursor de alguma linhas de desenvolvimento formal com repercussões em artistas como Brancusi ou mesmo Modigliani. Isto é, a presente mostra ajuda-nos a entender que a importância vanguardista de Amadeo encontra essencialmente nestes e noutros trabalhos de 1912, como o Álbum “XX Dessins”, mais conhecido e estudado, ou ainda o inédito conjunto de 143 fólios e 83 ilustrações realizado para ilustrar o conhecido texto de Gustave Flaubert “La Legende de Saint Julien L’Hospitalier, merecendo agora, finalmente, uma cuidada e facsimilada edição integral, acompanhada de um estudo aprofundado da autoria de Maria Filomena Molder. Em contraste com a fase mais convulsiva do pós-cubismo ou das experiências cromáticas e abstracto-geométricas, este deslumbrante conjunto inédito, que pode ser visto na sala do piso inferior do edifício-sede da Fundação Gulbenkian, sublinha a dimensão simbolista do trabalho de Amadeo, ao mesmo tempo que sugere como algumas inquietações futuristas tinham no artista português uma adaptação singular e coordenada com o registo essencialmente (cali)gráfico. Desse modo, texto e imagem conjugam-se numa espécie de paginação poética capaz de convocar de modo simultâneo uma figuração estilizada, africanizada e fragmentada na sua essência, e um compromisso decorativo de leitura simbolista, geométrica ou quase futurista, como só Amadeo podia desenvolver naquele período absolutamente extraordinário de experimentalismo vanguardista.

Observando com deleite as várias dezenas de obras que nos revelam um Amadeo sempre plural, dinâmico, mas agora reconhecidamente mais abrangente, sempre dialogante com as ousadias estéticas seu tempo, sentimos que em Portugal é também possível conceber e realizar exposições de dimensão internacional que ajudam a aprofundar e valorizar os nossos maiores artistas. Aguarda-se, assim, com entusiasmo, a publicação da fotobiografia e do prometido catálogo “raisonné”, tarefas que concluirão o amplo projecto de estudo e divulgação da obra de Amadeo de Souza Cardoso que o Centro de Arte Moderna iniciou em 2001.

 

(versão original: in «Arte Capital», Dezembro de 2006)

 

(imagem: Amadeo de Souza-Cardoso, «Entrada», óleo sobre tela, 1917, Coleção CAM-FCG)