Desde 2010 que o projeto artístico Musa paradisiaca realiza intervenções ancoradas na prática discursiva e no desenvolvimento, segundo as suas próprias palavras, de “parcerias temporárias com entidades individuais e coletivas de variadas competências”. O objetivo primeiro é construir e ampliar “uma família pensadora, revelada por muitas vozes”. Por isso, o diálogo e a verbalização plural em torno das formas, das matérias, suas simbologias ou micronarrativas, constituem os eixos operativos por onde se afirma uma prática de reflexão e descoberta, criando assim as condições para o desenho de particularíssimas cosmologias, como resultado da “discussão” e da “audição” do objeto, do tema ou do conceito que espoleta todo o processo de envolvimento e comunicação.
Como uma “filosofia prática” que procura a invenção de um culto e de uma comunidade, o projeto obedece a procedimentos específicos e a uma ética da observação em torno do objeto no espaço simbólico da arte, que mistura de modo deliberado o trabalho artístico, o seu discurso e a energia associada à estratégica de o pensar. Daí se potencia uma sensualidade definida pelo contributo polivocal dos narradores convocados, que estabelecem o diálogo paralelo em torno das histórias dessas formas e materiais postos em discussão.
Partindo de um “pensamento-estômago” como conceito da intriga, o projeto apresentado no exercício da plataforma RAUM introduz uma amplitude nova nesse processo dialogante e experimental, traduzida pela abertura, através do anonimato dos participantes, ao discurso do narrador desconhecido. No sistema de uma rede de participação que não será controlada a priori, dependente que está da temporalidade natural e concreta da realidade online, abre-se outra etapa de colaboração, desafiando os visitantes da RAUM ao discurso de um “pensamento” que passará literalmente, mas também em analogia, pelo “estômago” e pela “digestão”. Estes “pensamentos” realizam uma espécie de dissecação revelada na verdade dessas “entranhas” simultaneamente obscuras e transparentes, sobretudo quando observadas na crua análise do depósito de uma conversação sustentada pela ideia de que, se tudo se pode comer, tudo se pode pensar pelo estômago.
A proposta desta forma desenvolvida como Princípio de Restauração, assume ainda o estatuto de “primeira ceia” ao exercer uma dupla magia da atração, tanto pelo ato de comer em grupo, como pelo desafio dos significados, na exploração física e metafórica do exercício da refeição. O pão será o elemento “objeto”, no domínio real ou simbólico, de circulação entre todos os participantes, performando essa partilha, esse convívio narrativo e comunitário. O pensamento resultará assim de uma digestão concreta que procura a definição de um espaço formativo, na integração progressiva do alimento primordial e dos vários contributos discursivos nele inspirados. O resultado final estará naturalmente dependente do apetite ou do enfado dos que responderem ao desafio desta mesa singular.
[versão original in “raum – residências artísticas online”, Março de 2015, www.https://raum.pt/mnac]
[imagem: Musa paradisiaca – performance “Cantina-Máquina”, 19 setembro de 2015, in O Museu como Performance, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, Portugal – Performance-refeição com objectos de pão e narração. Curadoria de Cristina Grande, Ricardo Nicolau e Pedro Rocha]