1.
Quando observamos este conjunto de pinturas de Ema M e associamos o título ao seu aparato visual, há uma ideia que prevalece, marcada pela expressão técnica, pela abstração das imagens e pelo imaginário daí potenciado: The Biginning (2022), traduzível como o “princípio”, o “início”, é uma espécie de magma cromático de grande densidade e surpresa, que segue, no sussurro das pontas de feltro, alguns dos versos de William Butler Yeats, em especial o poema “Aedh Wishes for the Cloths of Heaven”. Com ele ouvimos a voz do poeta e místico irlandês:
Had I the heavens’ embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.
Inspirada pelo romantismo moderno destes versos, Ema M progride, vagueando entre o céu e a terra, em direção ao abismo da criação e dos sonhos. Das nuvens à superfície terrestre e às suas profundezas inexploradas, partilha connosco manchas mais ou menos vibrantes que persistem nessa dialética de palavras e cores reinventadas. No eclipse das formas convencionais, a artista dá-nos a dobra de um reverso invisível, a idiossincrasia da sua visão, uma nova linha do visível e dos seus sentidos. Risco a risco, exuberante e fantasiosa, a revelação do informe cristaliza um efeito cambiante, um mapa imaginado no fogo mágico do sortilégio.
2.
Outro primado se manifesta ainda. De modo literal, estas pinturas trazem versos nas margens inferiores desse papel branco de algodão, ou melhor, trazem sopros desse poema (e de outros ainda), como se de variantes sinestésicas se tratassem. A artista sempre gostou de explorar a simbiose dessa troca de valores, e já na série de pinturas As cores do Alfabeto (2014), nos desenhos para Le deviner-fable du Monde (2016) e para Animália & Vegetália (2017) – ou mesmo na sua mais recente coletânea For a play that has not yet been written (2023) – acentuava uma confluência de legibilidade entre o desenho, a pintura e o verbo, rasgando louvores ao cruzamento disciplinar, descobrindo microcosmos de ânimo universal, prodígios, ocultações e desvios, conspirando assim, a um tempo, contra o pragmatismo da racionalidade e a vida mundana. Ousadias ancoradas tão-só, porém, na liberdade absoluta da experiência estética e de uma interpretação afim dos jogos possíveis, entre a semântica e o deslumbramento da expressão visual. No primeiro dos títulos, Ema M estetizou individualmente as 26 letras do alfabeto, atribuindo-lhes uma coloração tipográfica e ilustrativa, essa prática que, afinal, particulariza a obra da artista, mas que desse modo concreto confiava a hipótese de infinitas combinações, recordando-nos a pedagogia dos primeiros tempos associados ao ensino e à aprendizagem do alfabeto. Há sempre nestas obras uma conexão entre o ingénuo, a origem e os primórdios da alegria na descoberta íntima da linguagem e do espectro cromático. Mas se, nesse caso, as pinturas assumiam a individualidade gráfica de cada letra, aludindo por vezes a práticas da escrita medieval, no uso de letras capitais (as maiúsculas tipograficamente ampliadas), na série de pinturas para The Biggining, as letras e as palavras surgem a partir da neutralidade do preto e branco, como uma escrita que apoia e dialoga com a pintura enquadrada pela delimitação previamente estabelecida. E assim, podemos ler fragmentos de poemas de Yeats, gravados nas margens, rompendo novos significados por associações incomuns. Por exemplo, em Golden and silver, em of night and light ou em Under your dreams, a artista traduz a plenitude de uma visualidade com vida própria cuja área pictórica reproduz ainda, para quem com ela está suficientemente familiarizado, a projeção sonora do riscado necessário ao seu aparecer. E esse aparecer simboliza, por fim, o último grau dessa ação primeira que identificamos com o cosmos, com a energia que circula entre os seres e as matérias e se transforma desde o início do Universo, na grande linha do tempo.
3.
Mas que começo é este, que princípio vislumbramos em The Biggining? Será o de uma ideia abstrata de origem, como sugerem, em parte, as dezasseis pinturas realizadas por Ema M? Será o início da vida biológica? Ou será, pelo contrário, um sintoma da nossa imaginação? Por entre efeitos de sedução (visual), aventura (semântica) e estranhamento (poético), arriscamos tratar-se de imagens que nos entregam a um princípio dos tempos, um planeta em formação. A fluidez das massas que, nas entranhas do planeta habitável, transitam invisíveis à nossa perceção, remete-nos para uma palavra e o seu significado. Dizem os dicionários que um magma é uma mistura pastosa, mais ou menos fluida, de matérias minerais em fusão, proveniente das zonas mais profundas da Terra, onde as rochas foram submetidas a pressões e a temperaturas elevadas. O principal mecanismo de formação dos magmas acontece por fusão parcial das rochas que formam a porção superior do manto terrestre. Essa fusão das rochas sólidas que molda o magma é controlada por três parâmetros físicos: a sua temperatura; a sua pressão; e a sua composição. Da argumentação geológica para o imaginário da estética visual, Ema M produz uma ductilidade específica, na evocação desse mundo quase inacessível, como a essência da arte, a que só se pode aceder mediante a sua erupção ou manifestação na superfície. Imagem e metáfora que convoca o visível desta série de pinturas-desenhos.
4.
Com minúcia e sentido de composição, a artista parece remeter-nos não apenas para uma ideia evocativa do magma, a partir de um exercício técnico simples mas laborioso, identificado com os trabalhos de coloração dos primeiros anos da nossa infância (os que foram crianças desde os anos 50-60, quando as canetas de feltro[1] assumiram um protagonismo cada vez maior nesse processo, impregnando papéis e dedos), como alcança ainda uma espécie de temperatura cromática, na pressão encontrada nos contrastes dos tons e desse riscado que nos prende os sentidos. E dizemos sentidos, no plural, porque, após a apreensão visual, de imediato se impõe um desejo de tatear a superfície dessas pinturas sobre papel. Tudo aqui invoca o começo, ou vários começos: o da formação da Terra, do nosso planeta, como da nossa capacidade de descobrir e experimentar a sua representação, essa primeira forma de conhecimento.
5.
Para além da hipótese inicial em torno de uma inspiração nas coordenadas da ciência, que princípio é este? Qual o ponto de partida que esteve na origem do exercício artístico? Trata-se de uma ação límpida, de inextricável pureza cuja manifestação inaugura o intento: aludir ao princípio dos tempos, ao longo do qual se constituiu, a soldo de inóspitas explosões, centúrias de silêncios, crepúsculos e esquecimentos milenares, o solo do futuro. Vemo-lo a partir dos fluidos das profundezas ou da fusão entre o céu, os mares e a terra ou outras narrativas imaginadas, na visão privilegiada dos seres humanos de todas as épocas ou dos artistas que as puderam intuir. Lobos e deuses, uns e outros, fazem dessa massa de fogo e luz aquilo a que, rendidos, apelidamos de arte. E assim, as cores sucessivamente riscadas pelas canetas de feltro são o meio através do qual se realiza poeticamente a unicidade do mundo. Ao mesmo tempo, com estes trabalhos, Ema M coloca o visual e o verbal numa relação de simultaneidade. A missão que se propõe ao observador será a de absorver essa condensação de pequenas e sucessivas manchas de cor, como em formless ou em with out a name, a experiência que reverte uma poética especial, encontrada entre o preenchimento do enquadramento retangular, repetido em cada pintura, e as palavras em “garamond” que a subscrevem a partir da semântica dos versos de Yeats.
6.
Há nesta relação entre a semântica e o valor puramente visual dessa imagem construída algo que nos transporta ao poder de prestidigitação que se concentra no ato de pintar. Ato de energia e liberdade que assume aqui a ambição de um paralelismo arcano, isto é, a magia que resulta de um assalto aos sentidos, de um contacto com forças maiores e inelutáveis, trazidas até nós pela prática xamânica, esse instrumento de acesso ao inaudito, que nos atrai desde a noite dos tempos. Foi Picasso o primeiro artista a recuperar essa visão para o domínio moderno, ao recordar-nos que a arte não busca a beleza estética, mas a magia: “Quando fui pela primeira vez ao Museu do Trocadéro, a pedido de [André] Derain, senti-me sufocar pelo cheiro a bolor e a abandono que se desprendia do ambiente. Estava tão deprimido, que não me importaria de partir imediatamente. Mas forcei-me a ficar, a examinar as máscaras e todos os objetos que os homens tinham desenhado com uma finalidade sagrada, mágica, para que servissem de intermediários entre eles e as forças desconhecidas, hostis, que os rodeavam, esforçando-se assim por subjugar o medo, dando-lhe cor e forma. E compreendi então que era esse o sentido próprio da pintura. Não é um processo estético; é uma forma de magia que se interpõe entre o universo hostil e nós, uma maneira de tomar conta do poder, impondo uma forma aos nossos terrores e aos nossos desejos. No dia em que compreendi isto, soube que tinha encontrado o meu caminho.”[2] Esse caminho, essa forma de magia que se opõe à hostilidade e ao medo é ainda a força que alimenta a pintura rigorosa de Ema M. Afinal, mais do que a expressão do belo, toda a obra de arte é uma espécie de campo magnético de intervalo, ou o diálogo com as forças que não dominamos e em relação às quais nos mantemos ligados através do indiscernível proposto por uma espiritualidade que nos transcende. Por isso, uma pintura é um objeto mágico, poderoso na sua presença fenoménica, apelando às energias que nele coabitam. Por isso, na sua objetualidade matérica e também enquanto imagem, uma pintura permanece pronta a ser experienciada, esperando apenas a nossa disponibilidade e entrega totais.
Noutro sentido, a obra de arte resulta sempre de um processo de fluidez constante entre os sentidos e o intelecto, instaurando um corte na consciência do tempo, onde o passado e o presente se fundem, de modo ineludível, como um rio em direção ao mar. Será essa imagem de fusão que poderemos encontrar ainda nos magmas cromáticos persistentemente apresentados nas pinturas de Ema M. Híbridas enquanto expressão de conferência entre imagem e palavra, as pinturas que a artista nos dá a conhecer como “começo” surgem assim para nos alertar sobre as origens remotas de um exercício, a arte, que nos acompanha desde a magia da invocação, seja a dos deuses ou do inominável, do desconhecido. Entre este e a prática artística existe uma comunhão própria, próxima da inevitabilidade, que nos estimula a imaginação e, ao mesmo tempo, nos prende ao fervor da sua orientação, como um estranho efeito de atração ou ordem xamânica. A naturalidade que daí emerge produz em nós, porém, uma relação de encantamento atraída pela sucessão de cores e dos significados possíveis nela observados.
7.
Estamos nestas imagens como se o desenho dos caminhos promovesse apenas uma ampla constelação a descobrir, permitindo acordar as possibilidades de uma dada evocação, de um reverso identificado enquanto proximidade ao real concreto, mas inacessível, como o magma terrestre, ou já perdido na longa temporalidade, como as paisagens que apaixonaram os pintores do Renascimento. Imaginada ou observada, a inspiração que conduz as pinturas de Ema M parece por vezes alcançar um desejo de paisagem, como se o magma se transformasse finalmente numa saída exterior, enquanto elemento de evocação que transcende ainda o som dessas canetas de feltro em ação constante. Entre azuis, verdes, rosas e vermelhos, mais pastel, menos fortes ou contrastantes, algumas dessas pinturas-desenhos transportam-nos à identificação de uma linha de horizonte, como em mysterious light e without rain, forçando uma presença que nos cabe apreciar, entre a tranquilidade marítima e o fogo celeste do entardecer, ou as obscuras profundezas dos rios em underwater quietness, como se fosse fácil distinguir na abstração de um exercício de coloração essa sugestão mínima, a “pequena perceção” do universo, entre o real e a sua representação. Ou seja, parafraseando José Gil, vive-se aí “a abertura e a exploração de um domínio afim ao da percepção artística: o das pequenas impressões, sensações ínfimas, imperceptíveis que acompanham necessariamente a apreensão de uma forma pictural ou musical.”[3] E que acompanham, acrescentamos nós, a apreensão do mundo e uma ideia da sua origem, entre a consciência da linguagem que auxilia essa tarefa e o poder “não-verbal” da perceção artística, essência e transcendência que, associada ao valor do mundo, institui um valor próprio, uma autonomia inviolável. Ainda nas palavras cristalinas de José Gil: “O paradoxo do não-verbal é esse: é que por um lado se inscreve num contínuo de sentido que desemboca por vocação interna na linguagem, e por outro conserva um esoterismo de código (ou de não-código) irredutível à linguagem.”[4] A arte deste modo identificada afirma um campo de acesso a valores não traduzíveis, quase indiferentes ao exercício da linguagem, inviabilizando uma qualquer estabilidade ou segurança ao nível dos significados. Mas é precisamente esse despojamento sobre a natureza do significado verbal que, perante estes trabalhos do olhar sobre as pinturas de Ema M, nos permite agir ao nível sensorial e cognitivo a partir uma liberdade incondicional. E assim, mesmo se encontramos The shapes all together, são as cores e a sua aplicação específica que produzem o efeito de uma espiritualidade inconsciente. De outra maneira, o cromatismo imaginado remeterá para uma ideia posterior de ligação ao real, quando as forças estratégicas manifestadas na sequência friccionada das canetas de feltro declinam um qualquer Blur e nos obrigam a reconhecer a poética deste exercício explorado entre palavras e imagens, como espécie muito particular de uma impression of uniqueness. Em cada uma destas dezasseis folhas, quedamo-nos perante o poder da imagem da obra de arte e as suas oscilações permanentes, seja na perturbação do olhar, entre o visível e o invisível, ou viajando num carrossel de som e silêncio, como o fez Paul Klee, um dos maiores artistas no acerto mágico dessa experiência conjunta, sinestésica.
8.
E a técnica? Qual é, neste caso concreto, o seu impacto na nossa perceção e na abertura da obra aos sentidos e ao seu sentido de evocação? Atentos à superfície pintada, e atraídos desde logo pela sua especificidade, não é difícil adivinharmos a técnica de coloração experimentada nestes trabalhos, pois, tal como na process art, o seu resultado denuncia deliberadamente uma visualização do processo de produção, identificado através da sucessividade riscada pelas pontas de feltro dessas canetas de cor. Apesar de estarmos sempre perante pinturas-desenhos, imaginamos, mediante as características da técnica usada, a performance determinante para a sua conclusão, isto é, pressentimos de modo retroativo a paciência e a durabilidade meticulosa dessa ação continuada. Metáfora final sobre a tarefa do tempo na definição de um mundo que exige ainda The beauty of things, criado para um futuro que não nos pertence, mas ao qual podemos associar um apogeu imprevisível, esse magma de audácia colorida, isto é, The unexpected colours in display. E se Ema M, como Y. B. Yeats, nos confessa possuir apenas os seus sonhos (But I, being poor, have only my dreams), somos nós que, com a sua partilha, estaremos mais próximos da riqueza infinita, ao aceitarmos a comunhão do objeto de arte, dessas linhas e cores, formas e não formas que planeiam apenas o tremor aclamado de um sentimento maior: “ver” (nas pinturas-desenhos) e “ouvir” (na evocação distante do som das pontas de feltro) a “origem do mundo”, a nossa origem, a origem de tudo.
[texto original in Ema M, The Beginning, Lisboa, Faculdade de Belas Artes – Universidade de Lisboa, 2023]
[imagem, Ema M,The Unexpected, (canetas de feltros sobre papel), 2022]
1 | ↑ | A caneta de feltro foi inventada em 1952 pelo norte-americano Sidney Rosenthal. Chamou-lhe então “Magic Marker”, continuando a ser hoje, para muitos, uma verdadeira “varinha mágica” de coloração. Existe em inúmeras cores fortes ou pastel, e também como caneta de feltro fluorescente. Quem a usa para pintar aprecia especialmente as canetas de feltro devido às suas características de elevada intensidade cromática. |
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2 | ↑ | Pablo Picasso, citado em Françoise Gilot & Carlton Lake, A Minha Vida com Picasso, trad. António Ramos Rosa e Cármen Gonzalez, Sintra, Publicações Europa-América, 1965, p. 314. |
3 | ↑ | José Gil, A Imagem Nua e as Pequenas Percepções – Estética e Metafenomenologia, Lisboa, Relógio D’Água, 1996, p. 11. |
4 | ↑ | Ibidem, pág. 19. |