O naturalismo da narrativa procura conduzir-nos pelos meandros de uma burguesia cansada, farta de si própria, mas que prossegue no seu quotidiano de pequenas e grandes afirmações existenciais, onde os sucessos profissionais se cruzam afinal com os insucessos pessoais e familiares. Do desastre da depressão iminente, individual e colectiva, a dupla responsável pelo argumento, Agnès Jaoui/Jean-Pierre Bacri, dá-nos uma imagem crítica mas contida, como só o cinema francês o sabe fazer. Os diálogos são de um rigor, diríamos, rhomeriano, e os ambientes criados facilitam uma leitura que mistura os ecos da poética ancestral construída em torno do amor e o seu fracasso contemporâneo.
Os personagens deste filme, e são muitos, entrecruzam-se a todo o momento, atropelando-se mutuamente nos seus impasses e frustrações, dependendo afinal uns dos outros para alcançarem a felicidade, esse momento. O problema é que nenhum dos personagens tem consciência do seu papel na definição do caminho afortunado e nisso acabam por se perder quase sempre, como na metáfora da criança que faz uma birra ensurdecedora para não comer, numa das cenas maiores e mais subtis deste filme.
Qual montanha russa em movimento lento, “Olhem para Mim” (em tradução pouco cuidada, que segue de modo preguiçoso a tradução inglesa do título francês “Comme une image”) assume-se como uma comédia simultaneamente dramática, com momentos hilariantes que resultam dos desencontros e incompreensões próprios da vida, mas também com belos momentos de reflexão interior protagonizados pelo feliz casamento da música (elemento essencial em todo o filme) com alguns planos e movimentos de câmara que acentuam uma terna comunhão com a natureza humana. Por outro lado, o canto e a sua elevação espiritual pontuam o filme na sua ziguezagueante crispação, como intervalos de repouso e esperança. Outro símbolo disso mesmo é a expressão sempre desiludida ou revoltada do personagem principal, Lolita (Marilou Berry), onde podemos identificar não só o desalento de uma adolescência prolongada pela desorientação, a afirmação cambaleante, e a falta de apoio ao nível dos afectos – com um pai (Jean-Pierre Bacri) demasiado absorto na sua própria crise de criatividade literária – como ainda uma utopia de expressão catártica, manifestada no leve sorriso desse rosto perdido na grande encruzilhada da vida adulta.
Sem o brilho ou a surpresa espontânea de “O Gosto dos Outros”, filme de estreia de Agnès Jaoui, este “Olhem para Mim” afirma-se contudo como subtil meditação sobre um quotidiano tornado demasiado complicado por nós mesmos, mergulhados que estamos numa cegueira de impaciência compulsiva, o que não deixa de ser também uma das marcas mais impiedosas da nossa contemporaneidade.
“Olhem para Mim/Comme Une Image”, (França, 2004)***
Realização: Agnès Jaoui
Actores principais: Marilou Berry, Agnès Jaoui, Jean-Pierre Bacri
e Laurent Grévill
(in Vida Ribatejana, 24-11-2004)